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Violência policial
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A chacina do Salgueiro e a guerra de extermínio em nome das drogas

Não importava nada se o indivíduo estava envolvido com o tráfico, roubo de carga ou assassinato de policial. Importava apenas se era jovem e negro de periferia. Esse era o alvo. O corpo matável

Em imagem de 2019, policiais do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar) patrulham ruas de uma das comunidades do Rio de Janeiro.
Em imagem de 2019, policiais do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar) patrulham ruas de uma das comunidades do Rio de Janeiro.Leonardo Wen

No dia 22 de novembro de 2021 os moradores do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, começaram o dia removendo corpos de um manguezal, após mais um cenário de barbárie provocado pela polícia militar. A chacina ocorreu após a morte de um policial ocorrida no sábado, dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra. A vingança veio na madrugada de 21 pra 22.

Policiais do BOPE, Batalhão de Operações Especiais, invadiram o Complexo do Salgueiro e mataram, até a última informação, 10 pessoas. Embora 7 dos 10 mortos até o momento tivessem passagem pela polícia, seus reais crimes nada tem a ver com o tráfico de drogas ou roubo de cargas, mas com o fato de serem negros, jovens e moradores da periferia. Essa chacina ocorreu quase 6 meses após a outra ocorrida no Jacarezinho, onde a Polícia Civil matou 28 pessoas, também após a morte de um policial. A dinâmica que compreende ambos os eventos é a mesma e está no Brasil desde a fundação, isto é, uma sociedade constituída, em sua maioria, por corpos matáveis.

Homo sacer e os corpos matáveis

Em Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua, Giorgio Agamben, filósofo italiano, resgata a figura do Homo Sacer, ou o “homem sagrado”, indivíduo que carrega em si a dualidade paradoxal do direito romano porque excluído da ordem ao mesmo tempo em que capturado por ela, porém do lado de fora. Agamben pretende contestar a tese foucaultiana de que a biopolítica somente se organizou enquanto poder sobre a vida dos corpos a partir da sociedade, saberes e Estados modernos. Para o italiano, esse controle sobre a vida –e a morte– remete à própria constituição do Estado ocidental, aos seus fundamentos mais básicos.

Na constituição do direito romano foi estabelecida a condição do bandido, abandonado pelo bando por representar a exceção e, por isso, capturado fora do ordenamento legal. A exceção aqui se refere aos comportamentos da vida cotidiana que formaram a base das estruturas legais. Essa ambivalência entre estar excluído, mas também capturado somente é possível devido a um conceito central para Agamben, o de soberania e que configura o poder estatal. É esse poder soberano, e apenas ele, que se faz capaz de enquadrar a vida nua nessa ambivalência da exclusão e captura. O Homo Sacer, capturado fora, se torna um indivíduo cuja morte matada, que deixa até mesmo de ter valor sacrificial, não é enquadrada como crime. É o biopoder total.

É impossível não associar esse personagem ao jovem negro da sociedade brasileira atual. Esse Homo Sacer brasileiro, excluído da sociedade, não tem voz e sua morte não produz nem mesmo um corpo a ser chorado, mas ao mesmo tempo está também capturado como exceção. Ao longo de toda a história brasileira o corpo negro foi condenado em sua própria existência. O sistema criminal foi se moldando de acordo com a necessidade para seu controle. Ainda durante a escravatura do século XIX, um toque de recolher, o Toque de Aragão, dava à polícia poderes discricionários para prender os corpos sem direitos durante os horários noturnos. Dois anos após o fim da escravidão foi criada legislação que punia com prisão quem não comprovasse residência e trabalho formal. Práticas e crenças da população negra foram e seguem sendo criminalizadas, processo do qual o proibicionismo e a “guerra às drogas” se configuram apenas como o estágio atual. Cabe salientar que desde a implementação da atual lei de drogas, de 2006 até 2019, a população carcerária enquadrada em crimes correlatos cresceu cerca de 600%. A grande maioria desse novo contingente carcerário é formada por jovens negros presos com pequenas quantidades e sem vinculação com facções. No mesmo período, a população brasileira cresceu 11%. Como a advogada e ativista norte-americana, Michelle Alexander, demonstra em seu livro “A nova segregação”, o sistema de justiça criminal norte-americano foi convertido em uma “estrutura racista e classista à serviço do capitalismo” com o fim de segregar a população negra através da morte ou prisão. No Brasil, a função do sistema criminal se estabeleceu de forma similar e, além de cruel e excludente, é caro para todos os contribuintes. A primeira fase do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir? revelou que somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo aplicaram mais de 5 bilhões de reais em 2017 para processar e prender pessoas enquadradas na atual Lei de Drogas. O quanto desse dinheiro não poderia ter sido usado para construir futuro ao invés de morte?

O foco não são as drogas

No início do mês de novembro, um estudo global colocou o Brasil em último lugar em uma lista de 30 países. O The Global Drug Policy Index 2021 comparou políticas de drogas de cada uma das 30 nações desde um ponto de vista dos direitos humanos. Foram atribuídas notas em critérios como a aplicação da justiça criminal, existência de políticas de cuidado e acesso a drogas regulamentadas internacionalmente para o alívio de dores crônicas que formaram um ranking no qual coube ao Brasil o último lugar, atrás de países como Uganda, Quênia, Indonésia e Afeganistão. As razões que fizeram o Brasil pontuar tão mal se referem à ausência de políticas de redução de danos e à prática, considerada “endêmica” pelo relatório, de execuções extrajudiciais relacionadas à política de drogas. Foi o que aconteceu no Jacarezinho e no Salgueiro.

Importa muito pouco o que tenha acontecido nas duas ocorrências. Se um policial foi morto, se os rapazes estavam vestidos para guerra (!), se vendiam e controlavam o narcotráfico local. Nada disso realmente importa porque o ocorrido nada teve a ver com drogas ou vingança. Os policiais festejaram antes e depois da chacina em São Gonçalo. Fizeram “uma baguncinha” no mangue do Complexo do Salgueiro, como disse um deles. A impunidade desses executores é garantida pela leniência do Ministério Público que não investiga e não processa os crimes da polícia que, sob a fachada da guerra às drogas, mantém legitimado perante à sociedade a prática de extermínio da população negra. Como o CESeC tem demonstrado em diversos estudos, a letalidade policial atinge de maneira desproporcional as populações periféricas e negras.

Naquela noite, na favela do Salgueiro e na manhã da incursão ao Jacarezinho, o que aconteceu foram sessões de terror e crueldade. A polícia invadiu casas, caçou os bandidos, os “excluídos” que seriam identificados e executados ali com base no julgamento daqueles policiais armados até os dentes e vestidos —estes sim— com camuflados de guerra com todos os aparatos de combate. Foram esses homens os juízes e os executores dos jovens negros que tiveram a desgraça de passar diante de seus fuzis. Foram esses policiais que decidiram o futuro ou o fim da existência de cada indivíduo no qual eles puseram os olhos naquela noite ou manhã. Não importava nada se o indivíduo estava envolvido com o tráfico, roubo de carga ou assassinato de policial. Importava apenas se era jovem e negro de periferia. Esse era o alvo. O corpo matável.

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