Por que os deuses dos indígenas deveriam ser inferiores ao dos cristãos?
Ou o ser humano recupera sua essência de estar intimamente enxertado na natureza, como estão os indígenas que desprezamos e lutamos para exterminar, ou seremos asfixiados
Muitos ficaram ofendidos e até escandalizados com a decisão do ministro do STF Luís Roberto Barroso de impedir as Igrejas de entrar nas comunidades indígenas que ainda não tiveram contato com a chamada civilização ocidental.
E isso não só por razões higiênicas, pois poderiam lhes transmitir doenças que eles não conhecem, mas também porque ninguém tem o direito de lhes impor, às vezes à força, nossa fé cristã nem qualquer outra.
A decisão do magistrado foi duramente criticada, por exemplo, no âmbito de algumas igrejas evangélicas que há tempos são muito ativas em sua catequese com os povos indígenas. Isso significa, na prática, que estamos convencidos de que nossas crenças religiosas são superiores às deles, o que leva alguns evangélicos à perseguição dos cultos africanos ou católicos.
Nada poderia estar mais distante, no entanto, da essência dos ensinamentos de Jesus, como revela a passagem da mulher samaritana que tentava convencer o profeta de que seu templo era melhor que o dos judeus. Jesus lhe deu uma lição quando lhe disse que um dia ninguém precisaria de um templo para adorar a Deus, que seria invocado “em espírito e em verdade”.
Seus seguidores não o ouviram e nasceram assim as guerras religiosas, o que soa como blasfêmia, já que não existem deuses melhores que outros. Isso significa querer impor pela força seu próprio deus considerado superior ao dos outros, o que leva à perseguição de quem cultiva outros credos.
E essa perseguição contra quem tem uma fé diferente da nossa, ou a pressão para que aqueles que já têm suas próprias crenças se convertam ao nosso credo, é palpável hoje no Brasil, nas comunidades indígenas com as quais católicos e evangélicos estão sendo muito ativos na imposição da própria fé.
Isso se arrasta desde os tempos da colonização europeia, quando, além de despojá-los de suas riquezas naturais, impunham-lhes à força sua fé cristã. Basta dar uma volta pelas igrejas católicas europeias para ver como estão repletas do ouro que arrancavam dos indígenas em troca da fé que lhes ofereciam.
Aparentemente, hoje isso se repete com as poucas comunidades indígenas que ainda praticam sua própria fé e seus costumes ancorados no amor e na defesa da natureza. Uma natureza hoje devastada por nós, que sempre nos consideramos superiores a essas culturas e tradições que hoje descobrimos ser a melhor forma de deter a tragédia anunciada de uma possível catástrofe mundial causada por nossa cobiça devastadora, que está colocando em perigo nosso planeta e nossa própria existência.
Sem contar que essa fúria cristã de querer eliminar as crenças e culturas de outras comunidades nem sempre se deve apenas à nossa convicção de que nosso deus e nosso credo sejam superiores aos daqueles que consideramos “selvagens”, ignorando que sem essas culturas enraizadas no respeito e na preservação da natureza o mundo talvez já não existisse.
Trata-se do conhecimento e da experiência de seu contato com os deuses da terra, que se revelam hoje mais eficazes do que os deus do céu para entender os segredos que o nosso pequeno planeta encerra.
Uma jovem indígena brasileira me contou com orgulho que eles conseguem distinguir até 60 tons de verde em suas florestas. E nós? Diante de sua capacidade para descobrir os mistérios da terra, nós, com toda a nossa cultura, parecemos simples aprendizes.
Sim, o ministro Barroso acertou ao proibir a entrada nessas comunidades, já que, com a desculpa de levar até eles a fé cristã que consideramos superior, entram também interesses bastardos muito distantes da fé, como os econômicos e de rapina.
A terra onde esses indígenas vivem esconde uma infinidade de tesouros naturais que hoje os chamados civilizados e tecnologizados pretendemos expropriar. O presidente brasileiro, para justificar a exploração e até o genocídio dos indígenas, chegou a afirmar que o que eles querem é “viver como nós”. Talvez quisesse dizer que esses indígenas preferem viver no cimento e na pobreza das favelas e não no paraíso natural em que nasceram e querem morrer.
O Brasil vive hoje dois genocídios que escandalizam o mundo, o da pandemia de covid-19, sobre a qual são descobertos a cada dia escândalos mais abomináveis, e o da extinção das comunidades indígenas para ocupar aquele pedaço de paraíso e se apoderar de seus tesouros naturais sob a desculpa de levar-lhes nossa fé.
O verdadeiro Deus, se existe, atuaria hoje como Jesus com os mercadores do Templo de Jerusalém, expulsando-os a chicotadas por profanar a casa de Deus. Isto é o que as religiões cristãs pretendem fazer hoje, transformando a fé e a adoração a Deus em um vil mercado que ofende a fé dos simples e humilha e saqueia os poucos indígenas que lutam para manter sua cultura e seus deuses. Eles resistem buscando proteger o pouco que nossa avareza —a dos ditos cultos— lhes deixou, e que tentamos arrancar com violência ou com a desculpa de impor nossa fé e nossa língua.
A política devastadora do Governo de Bolsonaro para a Amazônia, que assusta e escandaliza o mundo, leva não só à expropriação de suas riquezas naturais, mas também de suas crenças religiosas, sua sabedoria e seu conhecimento da natureza, em um mundo condenado à extinção e a morrer esmagado pelos demônios da avareza e de um capitalismo cada vez mais sofisticado e devorador. Um capitalismo que hoje tenta se apropriar também dos restos da sabedoria de nossos ancestrais, verdadeiros defensores dos últimos vestígios de natureza virgem ainda não devorados pelo cimento que nos condena todos os dias ao inferno da solidão.
Ou o ser humano recupera sua essência de estar intimamente enxertado na natureza, como estão os indígenas que desprezamos e lutamos para exterminar, ou seremos asfixiados pelo monstro da depressão e da perda de nossa identidade.
Segundo a lenda bíblica, o ser humano foi formado do barro da terra e não do cimento. A terra evoca nossas origens mais genuínas, enquanto o cimento é o símbolo do abandono da verdadeira cultura, nome feminino que, etimologicamente, significa cultivar a terra e não destruí-la ou sacrificá-la no altar de uma falsa superioridade que chamamos de modernidade. E se os verdadeiros “selvagens” fôssemos nós, amontoados em cidades onde as crianças nunca viram uma galinha ou uma árvore frutífera ou o desabrochar de uma flor?
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