_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

“Odeio o termo povos indígenas”: uma blasfêmia em dois atos

Não consigo entender que Weintraub, que é de origem judaica, possa usar expressões que recordam o ódio de Hitler e de seus ministros ao povo judeu

Indígena satere-mawe protesta em Manaus em 12 de junho para que os povos nativos com covid-19 sejam atendidos de forma adequada.
Indígena satere-mawe protesta em Manaus em 12 de junho para que os povos nativos com covid-19 sejam atendidos de forma adequada.Raphael Alves (EFE)

Quem vai esquecer a reunião ministerial do 22 de abril? Graças à liberação de um vídeo que cobriu toda a reunião, pudemos assistir a uma sessão do Governo que atualmente gerencia a res publica (a coisa pública, daí a palavra República) de nosso país. Se crianças ou adolescentes pronunciassem um dos 29 palavrões proferidos na ocasião, levariam uma advertência em casa ou na escola. Falta completa de educação e civilidade no mais alto escalão do executivo do Brasil. Presidente e ministros perderam vergonhosamente a compostura que se espera de pessoas que ocupam cargos tão elevados.

Mais informações
Pôr do sol em área da reserva extrativista Verde Para Sempre, em Porto de Moz, no Pará.
Como seria uma recuperação verde? Latino-americana e com justiça social
AME1745. MANAOS (BRASIL), 22/05/2020.- Fotografía del 14 de mayo que muestra a una indígena que usa tapabocas con la inscripción "vidas indígenas importan", durante el funeral del cacique Messías Kokama, víctima del COVID-19, en el Parque de las Tribos, en la ciudad de Manaos, Amazonas (Brasil). La pandemia del COVID-19 se está atacando de una forma muy violenta a las comunidades indígenas de América, unas poblaciones que, en muchos casos, viven en el olvido de sus dirigentes, con escaso apoyo de los sistemas sociales de protección y ajenos a los servicios de salud. El coronavirus SARS-CoV-2 está dejando miles de infectados y muertos en las comunidades nativas del continente, con un especial énfasis en la región amazónica sudamericana, donde la red sanitaria de países como Brasil, Colombia, Ecuador y Perú ya está colapsando por la alta cantidad de pacientes, muchos de ellos de pueblos originarios, que están llegando a sus instalaciones. EFE/ Raphael Alves ARCHIVO
A morte do futuro: covid-19 entre os povos originários
Jair Bolsonaro em reunião com o vice-presidente e ministros, no dia 22 de abril de 2020.
A íntegra da transcrição da reunião entre Bolsonaro e os ministros, que teve sigilo retirado pelo STF

O que mais me revoltou, porém, além da proposta descarada do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de aproveitar o tempo de pandemia para “ir passando a boiada” na Amazônia, foi o espantoso aporte do ministro da Educação Abraham Weintraub: “Esse país não é [uma colônia]. Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo”. Não consigo entender que Weintraub, que é de origem judaica, possa usar expressões que recordam o ódio de Hitler e de seus ministros ao povo judeu. A consequência desse ódio foi a Shoah, o holocausto que ceifou a vida de seis milhões de judeus, além de homossexuais, ciganos e deficientes.

Ouvir da boca de um ministro da Educação essas palavras prova mais uma vez o curso anti-indígena desse governo, que se alinha perfeitamente à famigerada expressão do general americano Philip Sheridan (1831 – 1888): "The only good indian is a dead indian” (O único índio bom é um índio morto). Já que tudo o que Donald Trump pensa e fala inspira o governo Bolsonaro nas suas atitudes e tomadas de posição, não é de se admirar que um ministro desse governo siga essa sentença que, na segunda metade do século 19, se tornou provérbio nos Estados Unidos e tem como pano de fundo o genocídio de milhões de indígenas durante a conquista do oeste norte-americano.

Na coleção de descarrilamentos do ministro da Educação, cuja falta de educação já criou incidentes diplomáticos com o presidente da França e a China, essa agressão explícita contra os povos indígenas do Brasil só teria enriquecido a biografia de um agente político desprezível se não tivesse ainda outra cena abominável e blasfema, que agora conspurca a face da nossa Igreja Católica.

A revista Veja publicou na sua coluna Radar, de 7 de junho, uma foto que retrata a visita, dois dias antes, de um grupo que se diz católico, capitaneado pelo padre polonês Pedro Stepien. As integrantes e os integrantes deste grupo já são famosos devido ao seu frequente comparecimento, juntamente com o mesmo sacerdote, à frente do Palácio da Alvorada, para prestar culto ao messias. Desta feita, porém, foram ao gabinete do ministro da Educação Abraham Weintraub para “confortá-lo” depois de “uma semana tão desgastante” para ele. “Oraram pelo momento delicado do ministro”, comenta a revista. Dessa iniciativa só se pode tirar a conclusão de que os visitantes consoladores apoiam as teses do ministro e assumem assim uma posição diametralmente oposta à do Papa Francisco e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. E quem se coloca contra o Papa já perdeu a catolicidade.

Mas a história não termina aqui. O padre levou uma imagem de Nossa Senhora de Fátima ao gabinete do ministro e, ostentando a estátua, posou sorrindo ao lado de um Weintraub aparentemente comovido e também sorridente. O que queria esse padre com essa encenação? Que relação esse ministro teria com Nossa Senhora de Fátima e sua mensagem aos pastorinhos na Cova da Iria, em Portugal, no ano de 1917?

O padre demonstra que não conhece a história da América Indígena e do papel de Nossa Senhora junto aos povos originários. Certamente nunca ouviu falar que ela apareceu já em 1531 a um indígena de nome Juan Diego, canonizado inclusive pelo papa polonês, e disse a ele: “Eu sou a vossa Mãe bondosa, tua e de todos vós que viveis unidos nesta terra e dos outros povos, que me amem, que me invoquem, me procurem e confiem em mim; escutarei o seu pranto, as suas tristezas, para remediar e curar todas as suas penas, misérias e dores. Não se perturbe o teu coração. Acaso não estás sob a minha proteção e amparo? Não estás no meu regaço e entre os meus braços?”.

Nossa Senhora se colocou ao lado e no meio dos povos indígenas e isso não apenas através de palavras carinhosas. A imagem milagrosa fala por si mesma. Mostra a Virgem Maria numa túnica usada pelas mulheres astecas para dizer que ela é Mãe dos astecas e de todos os indígenas. Ela pertence a esses povos tão sofridos e machucados e se solidariza assumindo feições indígenas. Acima da cintura há o laço que as indígenas usavam para indicar que estavam grávidas. E o filho de mãe indígena é indígena! Os raios de sol que circundam a mãe indígena simbolizam que ela está grávida de um Filho Divino.

Porque esse padre não levou a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe para o gabinete do ministro, para ensinar-lhe quem Deus ama com um carinho todo especial a ponto de a Mãe de seu Filho assumir traços indígenas? Talvez o ministro e junto com ele o padre e seus correligionários teriam se dado conta de que odiar os povos indígenas é odiar a Mãe de Deus e o seu Filho Jesus, nosso Senhor.

Erwin Kräutler é bispo emérito do Xingu e coordenador da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) - Brasil

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_