O mito do policial invencível criado pela fictícia guerra às drogas

Policiais que se outorgam um poder especial, como Da Cunha, servem à conveniente criação de mitos heroicos, usados por chefes de Estado e superiores hierárquicos que muitas vezes agem com objetivos não muito transparentes

Operação policial na Cracolândia no Centro de São Paulo (SP)/Willian Moreira/Futura Press/Folhapress)
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O ideal de policial Rambo - forte, ameaçador, invencível e quase que com poderes mágicos - é ficção científica. Mas isso não é tão óbvio quanto deveria e essa ficção é explorada à exaustão por quem quer lucrar com ela. Há policiais que vestem o personagem e fazem disso plataforma política, como o soldado youtuber, Gabriel Monteiro, eleito como o terceiro vereador mais bem votado do Rio de Janeiro. Isso, apesar de ter a extensa ficha - 70 faltas disciplinares em menos de quatro anos - , exposta no Twitter pela própria PM.

Esta semana veio à tona a notícia de que a Polícia Civil de São Paulo investiga o delegado influencer Da Cunha. Com milhões de seguidores no Instagram, o policial deflagrou, sozinho e durante as férias, uma “operação” na região da Cracolândia. Agora, ele é investigado por isso e responde a outros sete procedimentos internos. A questão é para que uns se elejam e lucrem individualmente, policiais, sociedade e políticas públicas pagam o pato.

Uma das críticas dos pares policiais à ação à la Stallone de Da Cunha é que isso coloca em “risco não só o próprio delegado mas também os usuários de drogas da região, muitas vezes usados como escudo humano por parte de traficantes”. Após a “operação Rambo”, a Polícia retirou armas e distintivo de Da Cunha e o afastou de atividades externas. Em vídeo para suas redes, o delegado diz que está sendo perseguido e assediado. Apesar de fazerem carreira como valentões contra os direitos humanos e o “mimimi”, apelar para a perseguição também é um modus operandi comum entre os Rambos quando repreendidos. Gabriel Monteiro e Daniel da Silveira, outro PM com carreira política preso por ataques ao Supremo Tribunal Federal e a ministros da Corte, se dizem perseguidos.

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São muitos Monteiros e Da Cunhas. Um dos efeitos diretos da fictícia guerra às drogas é a criação desses mitos. E eles são vitais para a manutenção do mito maior, a tal “guerra”. Se retroalimentam. Somado a isso, a imprensa e redes sociais amplificam muito a voz dessas pessoas ao dar a elas espaços gratuitos de publicidade. Bolsonaro, com suas aparições grotescas semanais em programas televisivos e afins, é o maior caso de sucesso do país. E isso não mudou após sua eleição. Jornalistas seguem exercendo o duvidoso jornalismo declaratório, quando apenas reverberam o dito por estas figuras, sem nenhum contraponto. O dito é falado exatamente para que vire manchete. E vira.

Eles ganham, mas a sociedade perde.

Herói não existe. Existem funcionários públicos que são usados por chefes de Estado e superiores hierárquicos que muitas vezes agem com objetivos não muito transparentes. Agentes públicos sem plano de carreira definido, com salários defasados, condições de trabalho muitas vezes precárias e que se suicidam muito mais que cidadãos comuns. O discurso do herói é conveniente para que os responsáveis se eximam de suas responsabilidades.

Responsabilidades inclusive sobre a morte.

Nos últimos dias três grandes organizações divulgaram dados preocupantes sobre agentes de segurança pública. O Instituto Fogo Cruzado mostrou que entre 2017 e 2021, 433 agentes de segurança foram mortos, e 766 ficaram feridos no Grande Rio. A grande maioria - 335 mortos e 312 feridos - foram baleados fora de serviço. Estes dados são reiterados pelo Observatório de Segurança que também mostram que eles são maioria durante a folga e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que revela que essa é a realidade de 7 em cada 10 policiais no Brasil. Isso nos mostra que herói, só em quadrinhos mesmo. Os policiais morrem menos em ação e mais quando estão “sendo civis”. A maior parte deles é vítima de homicídios e morre em tentativa de assaltos.

No Rio de Janeiro, a suspensão de operações policiais não urgentes - medida imposta pelo Supremo Tribunal Federal e conhecida como ADPF das Favelas ou APDF 635 - poupou também a vida de agentes públicos de segurança. O número de policiais mortos chegou a cair quase 30%, mas com o desrespeito à medida, o número de vítimas voltou a subir.

No fim, o herói é palanque. E vem dando muito certo assim. Certo para quem não se importa com o sacrifício da vida dos outros.

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