Brasil entra em 2021 com desafio urgente de diminuir desigualdades
Questões de raça e gênero, educação, saúde, meio ambiente e democracia são temas essenciais no país
Um dos principais desafios, entre os vários que o Brasil precisa enfrentar em 2021, são as suas desigualdades. Todos os dias elas impedem que a maior parte da nossa população, estimada hoje em mais de 211,7 milhões, tenha seus direitos assegurados e viva com dignidade e qualidade de vida.
Nossas desigualdades derivam em parte do racismo estrutural e da desigualdade de gênero, bem como da disparidade de renda e de acesso à educação e saúde de qualidade, que são temas que devem pautar o país com prioridade no próximo ano. Existe, por exemplo, uma interseccionalidade perversa entre raça e gênero que faz com que milhares de mulheres negras brasileiras fiquem à margem da sociedade, muitas delas líderes de família nas periferias urbanas, com pouca escolaridade, baixos salários e vivendo em situação vulnerável, vítimas de inúmeras violências. Para piorar, em 2020, a pandemia de coronavírus agravou ainda mais a dura realidade de quem já vive as desigualdades.
Primeiramente, todas essas urgências demandam que saíamos do discurso individual, da simples conscientização sobre o problema, e partamos para ações concretas no espaço público. Ou seja, é importante ser antirracista e antissexista num nível individual e desejar mais saúde e educação, mas isso só não basta. Dada a gravidade dos problemas, são necessárias ações —e ações no espaço comum—, sejam de cidadãos, governos de diferentes instâncias, empresas, organizações da sociedade, universidades, entre outros.
Neste ano, grandes corporações mostraram que é possível agir com intencionalidade para colocar negros e negras em cargos de chefia e o voto popular e democrático os elegeu para cadeiras em várias Câmaras Municipais. Mas é preciso mais: “É o momento de mover estruturas que foram criadas por pessoas brancas e de reestruturar o pacto social no qual vivemos. Para a mudança estrutural, é hora dos mais privilegiados cederem parte dos seus privilégios”, afirmou Thiago de Souza Amparo, professor da FGV Direito SP, no 11º Congresso GIFE, Fronteiras da Ação Coletiva, em novembro.
E, como nos alerta o filósofo camaronês Achille Mbembe, trata-se de “sair de si mesmo, tecer relações onde cada um é participante da sociedade e do universo”. Ou como convida o escritor moçambicano Mia Couto: “abrir as janelas para o mundo na chegada do novo para que fique impregnado de luzes, ruídos e sombras. É assim o nascer do tempo: apenas a vida nos defende do viver”. Significa, portanto, colocar-se na realidade e corresponsabilizar-se por ela, com ações para melhorá-la. Ou, como mostra a série de vídeos Enfrente, no canal do Youtube de mesmo nome, em que a Fundação Tide Setubal traz histórias de quem lidera transformações nas periferias, é preciso: “tecer a rede, furar a bolha, responsabilizar-se pelo outro. Criar ações para poder ser, em conjunto. A história é de cada um, o movimento é do todo”.
A área da Educação, brutalmente golpeada pela pandemia, segue como um desafio fundamental e estruturante no país. Em 2020, o coronavírus obrigou milhões de estudantes a terem aulas remotas, longe dos professores e colegas, e a enfrentarem a falta de internet, o que aumenta as desigualdades de aprendizado, uma vez que só uma parcela da população possui conexão adequada para acompanhar o ensino remoto. Não é possível falar de ensino híbrido para o próximo ano enquanto essa questão tecnológica não for uma pauta prioritária dos governos, ao lado das empresas de telecomunicações. Municípios pobres não conseguirão distribuir chips nem no curto prazo. Isso pode até ocorrer em grandes centros como São Paulo, mas não em localidades pequenas.
O distanciamento social e a irregularidade nos estudos devido à falta de internet são muito preocupantes porque podem elevar os já altos índices de evasão escolar, sobretudo no ensino fundamental 2 e no ensino médio e em regiões periféricas, o que afasta mais ainda o Brasil dos países membro da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em qualidade da Educação. Por isso, são necessárias agora políticas específicas de reforço e de recuperação escolar e uma especial atenção no acolhimento a professores, crianças e jovens na volta à escola porque a saúde emocional é algo fundamental neste momento.
Diante desse cenário, todos os profissionais da educação, tais quais médicos e enfermeiros, devem ser considerados como de atividades essenciais e serem vacinados contra a covid-19, com prioridade, para que ocorra uma retomada segura e cuidadosa das aulas presenciais no início de 2021, com condições adequadas que não representem riscos à comunidade escolar.
Além disso, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) expira em 2020 e o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), em 2021, quando acabam suas metas. São dois mecanismos fundamentais para a melhoria da educação, que podem diminuir desigualdades. Se o novo Fundeb, recém-aprovado, já foi reconfigurado num bom formato, em que municípios mais pobres vão poder receber recursos, mesmo estando em estados ricos, reduzindo-se assim desigualdades regionais, o novo Ideb, se quiser avançar e aprimorar a educação básica, não deve focar apenas nas desigualdades de forma geral, isto é, nos alunos abaixo do nível adequado, mas adicionar a questão racial.
Uma equação muito simples do professor Mauricio Ernica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) ilustra de forma objetiva como os negros continuarão tendo a pior aprendizagem no país, se a questão racial for deixada de lado no Ideb. Supondo-se que, em determinada localidade, existam mil alunos no nível adequado, sendo que 500 são brancos e 500 são negros, e consegue-se melhorar a aprendizagem de 500 deles, colocando-os acima do adequado. Se 400 forem brancos e 100 negros, isso significa que a maioria dos negros ainda continua em um nível inferior. Ou seja, sem medir avanços por raça, o Ideb pode continuar a reproduzir nosso racismo por mais anos.
Em paralelo, a pauta do meio ambiente é também um desafio fundamental porque interliga o Brasil ao resto do planeta, tamanha a relevância das mudanças climáticas no globo. Ao mesmo tempo, é urgente proteger os povos indígenas e a rica biodiversidade da Amazônia e de outros biomas, como o Pantanal, vítima de inúmeros incêndios neste ano. Outra iniciativa necessária reside na mitigação dos efeitos do clima nas grandes cidades, que ocasionam enchentes e desastres, os quais atingem e prejudicam principalmente as populações mais vulneráveis, que vivem em condições insalubres, sem saneamento básico —um tema fundamental, dado que quase metade dos brasileiros ainda não possui esgotamento sanitário em pleno século 21.
Por trás de tudo isso, reside algo essencial a todos os avanços de que o Brasil precisa no próximo ano: a democracia. A pandemia mostrou o quanto as instituições democráticas foram importantes para garantir dignidade aos brasileiros mais desassistidos, como no caso da renda emergencial, proposta pelo Congresso Nacional —que, na verdade, poderia e deveria se tornar perene, uma “renda cidadã”, como já provam matematicamente muitos economistas. Por isso, mais do que nunca, em 2021, durante a recuperação dos terríveis efeitos da covid-19 na vida da população, os brasileiros precisam contar com o pleno funcionamento das instituições democráticas.
Ao mesmo tempo, a sociedade civil se conscientizou e se mobilizou durante este ano, de uma maneira poucas vezes vista, trazendo para si muita responsabilidade e demonstrando solidariedade, e no campo das instituições filantrópicas, como fundações e institutos, aumentaram significativamente as doações, inclusive de forma conjunta e colaborativa. Esse comportamento valoroso precisa ser de longo prazo, não só emergencial e pontual, para que ocorra um combate às desigualdades mais duradouro, estruturante e interligado às políticas públicas, mas sem a perda da autoria e do protagonismo da sociedade, que sempre deve cobrar os governantes. Organizações da sociedade podem realizar novas iniciativas junto com o governo, levando modelos, de pesquisas e de avaliação de projetos de grande escala, para subsidiar e aprimorar as políticas públicas, porém sem perderem seu lugar importante de crítica, pressão e advocacy.
Num Brasil contemporâneo perpassado por tantas polarizações, disputas maniqueístas de ideias e narrativas e saídas individuais, um desafio que se impõe é o da escuta ativa e do diálogo franco. Parece que tem sido cada vez mais difícil nos escutarmos uns aos outros, aprendermos com pontos de vista distintos dos nossos, sem fazermos generalizações e julgamentos, e chegarmos a novos consensos, o que de fato pode gerar mais avanços coletivos. Recentemente, fazendo releituras de Paulo Freire à luz do momento atual, revi como ele já propunha construirmos conhecimento a partir da experiência própria de vida de cada um e da experiência de outros — como os lavradores pernambucanos que ele atentamente escutava.
Isso me fez relembrar de como teóricos africanos e negros também valorizam a escuta e a oralidade e de como jovens pretos e pardos relatam o quanto aprenderam e aprendem em conversas memoráveis com suas avós e bisavós, que sobreviveram num Brasil excludente e racista, pois acredito que somos a soma de encontros que vamos criando ao longo da vida e, como afirma Cris Bartis, cocriadora do podcast Mamilos, existe uma “importância de deixar acontecerem rachaduras nas nossas certezas para que infiltrações possam entrar”. Assim, mais do que um desafio, nutro um forte desejo de que possamos dialogar mais em 2021 para forjarmos um Brasil mais inclusivo, justo, equitativo e democrático, onde todos, e não só uma minoria, tenham a oportunidade efetiva de se desenvolver e prosperar, voltando a ter esperanças no nosso país, tão potente e diverso.
Neca Setubal é doutora em psicologia da educação (PUC-SP), mestre em ciências políticas e socióloga (USP), educadora, presidente dos conselhos da Fundação Tide Setubal e do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) e fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
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