Vacina, ainda que tardia
O contágio de um que não queira se vacinar sempre será um risco para o contágio dos demais
O Supremo Tribunal Federal está para julgar a ação direta de inconstitucionalidade nº 6.587, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a qual pleiteia a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º, III, “d”, da Lei n. 13.979/20, que permite a determinação de vacinação compulsória como medida de controle da covid-19, epidemia que infectou mais de 70 milhões de pessoas ao redor do mundo (quase 7 milhões no Brasil) e ceifou a vida de mais de um milhão e meio de pessoas (mais de 181.000 mortos no Brasil).
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Embora a legislação seja clara sobre a obrigatoriedade de vacinação, o debate sobre a constitucionalidade mostra-se pertinente em função de uma possível violação dos direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à saúde. De um modo geral, os direitos fundamentais estatuídos na Constituição Federal assumem a forma de princípios jurídicos, com hipóteses abertas de aplicação e sem uma consequência jurídica definida na própria norma constitucional, o que conclama juízos de interpretação e ponderação por parte dos aplicadores das normas, mormente dos tribunais. Essa característica leva os princípios jurídicos a colidirem, o que demanda a ação do Legislativo, para tentar harmonizar previamente esses conflitos e apresentar uma solução constitucionalmente aceitável, e do próprio Judiciário, para decidir os casos concretos em que esses conflitos ocorram e avaliar a própria constitucionalidade da solução dada pelo Legislativo, coibindo eventual excesso contra algum direito fundamental ou sua proteção deficiente.
Embora as consequências jurídicas não estejam inteiramente definidas nos princípios constitucionais, todos direitos fundamentais talhados como princípios geram deveres estatais negativos e positivos. Por isso, ao passo que o direito à saúde, na dimensão social e coletiva, exige do Estado uma postura ativa para a prevenção de doenças contagiosas, o direito à integridade física e o próprio direito à saúde, na perspectiva individual, reclamam obrigações negativas, entre elas a de respeitar a decisão individual de não ser submetido a nenhum tratamento ou procedimento de saúde sem seu consentimento, o qual deve ser livre e esclarecido. Como se percebe, há um conflito normativo e o Legislativo já apresentou a solução que entendeu mais harmoniosa: a obrigatoriedade da vacinação. Ou seja, se é obrigatória, a não submissão do indivíduo poderia gerar sua responsabilização e a aplicação de alguma sanção prevista em lei. Agora se aguarda a posição do Supremo Tribunal Federal sobre eventual excesso desproporcional dessa medida legal, o que levaria aquele tribunal a reconhecer a inconstitucionalidade da medida e sua nulidade, o que impediria sua aplicação.
Esse cenário de conflito provocado pela obrigatoriedade de vacinação de doenças infectocontagiosas não é novo, embora tenha sido reavivado pela epidemia de covid-19. No Brasil, o antecedente histórico marcante é o da Revolta da Vacina, do início do século XX. Tratou-se de revolta popular contra as medidas sanitárias usadas para o combate da varíola, peste bubônica e febre amarela, dispostas em legislação sanitária cuja autoria intelectual é atribuída a Oswaldo Cruz. Na época, o uso da força dissipou a insurgência popular contra as medidas sanitárias.
Há duas questões diversas, conquanto interligadas, que podem ser abordadas sobre o tema. A primeira é a avaliação política sobre a maior eficiência estratégica do investimento em campanhas educativas para esclarecer a população sobre os benefícios sanitários da vacinação em vez de partir para a repressão. Nesse contexto, não parece haver dúvida de que uma ampla campanha educativa teria o condão de demover a resistência de boa parte da população, até porque há a percepção de que muitos anseiam pela vacina, para tentar retomar um pouco do ritmo de vida pré-pandemia. No caso da Revolta da Vacina, alguns estudos históricos sugerem que a insurreição popular ocorrera justamente pela falta de maior esclarecimento da população, embora o descontentamento também estivesse direcionado contra medidas de urbanização promovidas pelo poder público, com retirada de algumas moradias mais populares e seu deslocamento para as periferias, a par de disputas políticas que fervilhavam à época.
Ainda assim, mesmo que houvesse êxito nessas campanhas, sempre haverá aqueles que se recusarão a ser vacinados por convicção política, ideológica, moral ou de outra natureza. Os veículos de mídia noticiam o reaparecimento de algumas doenças infecciosas que eram consideradas erradicadas no Brasil, como o sarampo, em função da diminuição do índice de vacinação, inclusive por força do crescimento de movimentos antivacinação. Por isso, independentemente das campanhas educativas para incentivar a vacinação, o fim de prevenir a covid-19 será mais bem atingido se a vacinação for obrigatória. Logo, a segunda questão é avaliar a constitucionalidade da vacinação obrigatória.
Ainda que seja bem factível a conclusão de que a vacinação obrigatória promove mais que a vacinação facultativa o fim de prevenir o espalhar da doença, é certo que nem assim poderá o Legislador adotar medidas que sejam excessivamente restritivas aos direitos fundamentais. Logo, o que o Supremo Tribunal Federal provavelmente fará é o exame da proporcionalidade da vacinação obrigatória, isto é, se essa medida não atinge excessivamente o direito fundamental à integridade física e psíquica e o próprio direito à saúde na perspectiva individual.
O tema foi abordado com mais profundidade jurídica em artigo recém-publicado, inclusive quanto à avaliação da constitucionalidade dos tratamentos médicos compulsórios, o que abrange a vacinação obrigatória, sem que haja espaço aqui para um maior desenvolvimento da argumentação. O fato é que, na época da Revolta da Vacina, houve viva controvérsia sobre a viabilidade constitucional de obrigar a vacinação. Rui Barbosa, em discurso no Senado Federal em 1904, cravou que a medida era inconstitucional, justamente pelo suposto abuso de vacinar contra a vontade individual que deveria reinar sobre o bem de personalidade de seu próprio corpo. No entanto, embora o Supremo Tribunal Federal, à época, tenha concedido habeas corpus em alguns casos de imposição de medidas sanitárias baseado em questões formais —o fundamento da decisão era que as medidas restritivas não teriam sido impostas por lei, mas por regulamento, o que feriria a separação de poderes—, não se posicionou definitivamente sobre a constitucionalidade da vacinação obrigatória em si.
Nos Estados Unidos, berço do constitucionalismo moderno, porém, a Suprema Corte expressamente examinou a questão da constitucionalidade da vacinação obrigatória. Em 1905, ao decidir o caso Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11, que versava sobre a vacinação obrigatória contra a varíola, aquela Corte considerou que não havia ofensa à cláusula do devido processo legal e de igual proteção da lei, de sorte que não anulou a lei do Estado de Massachusetts.
Obviamente, o contexto jurídico e social atual é outro. Contudo, dentro de um cenário em que haja confiabilidade quanto à segurança e à eficácia da vacina, o que deve ser atestado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a conclusão é que a medida legal de vacinação obrigatória é uma restrição legítima, porque proporcional, sem afetar de modo excessivo os direitos fundamentais à integridade física e psíquica e o direito à saúde na perspectiva individual. Afinal, embora um tratamento obrigatório possa atingir de modo considerável o direito individual, fatalmente a necessidade da preservação da saúde comunitária, corroborada por números e estatísticas de mortos que só crescem, tem mais peso e deve prevalecer no conflito. O contágio de um que não queira se vacinar sempre será um risco para o contágio dos demais, ainda que vacinados, uma vez que a imunidade prometida pelas vacinas até agora em desenvolvimento não é total nem é de longa duração.
Em epílogo, cabe mencionar que o título desta opinião tem por base o lema emblemático da Inconfidência Mineira, retirado de poema de Virgílio e que hoje estampa a bandeira do Estado de Minas Gerais em latim, com a substituição, por suposto, da palavra “liberdade” por “vacina”. De qualquer forma, na quadra atual da história, essa adaptação faz todo o sentido, tendo em vista que a esperança de restauração da nossa liberdade dos grilhões tirânicos da pandemia ampara-se na vacinação em massa da população. Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal.
Luiz Antônio Freitas de Almeida é doutor e mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É promotor de Justiça no Mato Grosso do Sul.
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