Coluna

E se Diego Maradona fosse mulher?

Não serão os homens que entoavam hinos de futebol em seu velório que devem tomar as ruas de Buenos Aires nos próximos dias

Mulher exibe tatuagens em homenagem a Diego Maradona em Buenos Aires.UESLEI MARCELINO (Reuters)

Ele não seria famoso nem teria ficado rico pelo futebol. Uma multidão não teria se arriscado em seu velório em meio a uma pandemia pelas ruas de Buenos Aires. Não há ofensa ao morto nesta constatação —como uma brasileira e uma argentina, sofremos com a morte fora de hora de Maradona. Ainda crianças em...

Ele não seria famoso nem teria ficado rico pelo futebol. Uma multidão não teria se arriscado em seu velório em meio a uma pandemia pelas ruas de Buenos Aires. Não há ofensa ao morto nesta constatação —como uma brasileira e uma argentina, sofremos com a morte fora de hora de Maradona. Ainda crianças em Alagoas ou Córdoba, os domingos parecem ter sido parecidos a nós duas: o som de narradores de futebol no rádio ou na televisão e tantos outros gritos de homens a cada gol. A história de Maradona é também a da ambiguidade da masculinidade em nossos países —um tipo adorado e adorável à multidão, mas bruto e violentador entre quatro paredes. Acusações de violência contra suas companheiras foram parte de sua vida pública, o que o conforma como o macho típico da região que mais violenta mulheres e meninas no mundo, a América Latina e o Caribe.

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Somos de uma geração em que as mulheres no futebol eram inimagináveis. Marta, a brasileira do drible, está dentre as melhores do mundo. Não é tão famosa nem sequer rica como Pelé ou Maradona. Não há controvérsias sobre sua vida privada, exceto sua sexualidade que é tema de curiosidade indiscreta. Marta fala pouco de política, e também pouco de si. Foi criada pela mãe, uma mulher sozinha de uma cidadezinha do sertão. A cidade de 10.000 habitantes a chamava de “menina-macho” porque jogava futebol, um esporte de homens. Não conheceu o pai, um homem que abandonou a família quando ela tinha um ano. Há quem descreva o gesto do pai como “aborto paterno”.

Não há isso de “aborto paterno”. Há abandono, negligência e solidão das mulheres no cuidado de crianças. Aborto é uma experiência dos corpos que gestam, majoritariamente das mulheres. Tanto no Brasil de Marta quanto na Argentina de Maradona, o aborto é criminalizado: as mulheres arriscam-se na clandestinidade, adoecem, algumas morrem porque, em algum momento da vida, estão certas de que não podem ter um filho. No Brasil de Marta, o aborto se tornou uma questão política que move o ódio bolsonarista na perseguição à sexualidade e à reprodução. Meninas miudinhas, trancafiadas em casa durante a pandemia e vítimas de estupro, são alvo de perseguição convocadas como “assassinas”, quando buscam os serviços de aborto legal. Histórias de terror semelhante são contadas na Argentina, onde menininhas violentadas são enganadas por médicos para impedi-las de abortar, são perseguidas por religiosos para celebrar chás de bebês ou são esquecidas em abrigos.

Mas algo de diferente está por acontecer na Argentina que ainda chora o luto de Maradona. O aborto é, agora, tema do povo comum, da multidão que fez a maré verde em 2018. Não serão os homens que entoavam hinos de futebol a Maradona em seu velório os que devem tomar as ruas de Buenos Aires nos próximos dias. Serão mulheres e meninas comuns, gente de todas as idades e formatos, famílias com suas avós e crianças de colo. O presidente Alberto Fernández apresentou dois projetos de lei ao Congresso Nacional do país —o primeiro para legalizar o aborto até a 14ª semana de gestação, o segundo para proteger os primeiros 1.000 dias de vida de um recém-nascido. Não há incoerência na dupla proposta, ao contrário; é a defesa da vida das mulheres em sua integralidade: sobre se, como e quando ter filhos.

Maradona foi um defensor da proposta de Fernández: “Minha ideia é cuidar da mulher”, disse ele. Não sabemos se sua masculinidade foi civilizada pelas filhas, uma experiência comum aos machos brutos na juventude, ou se, na questão do aborto, Maradona estava além de muitos homens com poder de representação pública. Uma das filhas do jogador, Dalma Maradona, esteve nas ruas em 2018. Como ela, nós também marchamos e esperamos a madrugada em vigília tomada pelos longuíssimos e memoráveis votos dos senadores. Não foi ali, mas parece que será em breve —a Argentina poderá se transformar no maior país de América Latina e Caribe a legalizar o aborto por um projeto de lei do presidente do país. “Sinto que se não foi hoje, será amanhã... As mulheres já se mobilizaram. A reinvindicação é das mulheres”, disse Dalma. É verdade. Pena que Maradona não poderá celebrar conosco. Parece que será lei.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown. Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.

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