‘Pañuelazo’ pelo aborto na Argentina
É o feminismo do mundo real de 99% das mulheres que bate às portas da Casa Rosada, sede da presidência, a partir de hoje
A Argentina vive hoje um pañuelazo. A palavra é mesmo hiperbólica, e não pode ser traduzida: são as herdeiras das avós e mães de lenços brancos da “Praça de Maio” que atravessam o país com os lenços verdes pela descriminalização do aborto. Em agosto de 2018, foram cerca de um milhão de meninas e mulheres caminhando pelas ruas de Buenos Aires à espera da votação do projeto de lei que já foi oito vezes à plenário. Perdeu-se por uns poucos votos e o tema agora retorna antes mesmo do início dos trabalhos legislativos —presidente Alberto Fernández tomou para si a questão da descriminalização do aborto. Fernández diz não ser capaz de “viver em paz com a própria consciência”, ao imaginar que mulheres pobres adoecem ou morrem pela clandestinidade do aborto.
A história é mais longa do que a chegada de Fernández ao poder. É certo que há uma ousadia no gesto de dar risadas com Papa Francisco no Vaticano, falar de dívida e pobreza, admirá-lo publicamente como líder religioso pelo Twitter, e daí a uns dias anunciar em universidade francesa que pretende descriminalizar o aborto. Descreveu a si mesmo como alguém que não lhe cai bem “a hipocrisia”. Às mulheres não cai bem nem a hipocrisia, menos ainda o medo da clandestinidade do aborto: é a mesma mulher católica que se confessa aos domingos na Igreja de Papa Francisco que vive a clandestinidade do aborto. É a mulher comum que promete novamente ocupar as ruas do país com os lenços verdes que já são o símbolo da descriminalização do aborto de Oaxaca, no México, a Santiago, no Chile, com as performáticas vendadas do grupo LaTesis sobre “um estuprador no caminho”.
Como em vários países latino-americanos, o aborto é crime na Argentina. Uma mulher, além de pecadora, vive o risco da ilegalidade com a ameaça da prisão. Assim como em todos os países onde o aborto é criminalizado, os efeitos da clandestinidade são desigualmente vividos pelas mulheres: quanto mais pobres e vulneráveis, maiores os riscos. O aborto é um procedimento seguro se realizado em condições seguras. Não por acaso, as argentinas descrevem a descriminalização do aborto como uma “dívida da democracia às mulheres”. Reconhecer o direito de cada mulher de decidir sobre sua vida reprodutiva, sem intimidá-la com a força do direito penal, é uma proteção de cidadania. Só mesmo em um país onde as lutas políticas ocupam as ruas, o aborto é, ao mesmo tempo, uma questão de saúde pública, mas de cidadania democrática.
O primeiro projeto de lei que tentou descriminalizar o aborto na Argentina data de 1937, um momento de auge da Argentina como país de prosperidade econômica e valores iluministas nas elites governantes. Desde então, o poder da Igreja Católica foi insistente na política do aborto. E não será agora, ainda mais com um papa argentino, que o clero abandonará sua vontade de poder: em resposta à ousadia de Fernández uma campanha nacional será lançada no dia 8 de março. O presidente do episcopado argentino, Oscar Ojea, convocou a Igreja Católica à campanha “Sim às mulheres. Sim à vida”. Se não fosse sincera nas crenças, diríamos que o título da campanha mais parece um sarcasmo às mulheres.
Só há uma maneira de dizer “sim” à vida das mulheres: descriminalizando o aborto. Aborto é uma necessidade de vida das mulheres comuns. Por isso, o lema cai bem ao feminismo dos lenços verdes que também querem às mulheres vivas. É aí que a Igreja Católica dá sinais de que perdeu o rumo da história. O presidente é só um porta-voz recente de mais de 700 organizações que se mobilizam pela questão do aborto nos últimos 15 anos. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito tem a paciência dos grandes movimentos que ocupam as ruas—é o feminismo das mulheres comuns, as mesmas que, hoje, sentam-se em frente dos prédios públicos para ler quadrinhos, poesia ou filosofia como sinal de existência e persistência. É o feminismo do mundo real de 99% das mulheres que bate às portas da Casa Rosada a partir de hoje.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown
Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.