A fome de volta como assombração ao Brasil pós-golpe
A insegurança alimentar bateu à porta das famílias carentes mesmo antes da pandemia do coronavírus. Só a velha do chapelão explica
“Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça” — Chico Science & Nação Zumbi, em ‘Da lama ao caos’
A velha mal-assombrada do chapelão castiga sertões, veredas e as beiradas dos formigueiros metropolitanos. Tal criatura, cuja aba do chapéu sombreava o mundo de desgraça, é a imagem da fome braba na visão dos habitantes mais antigos do semiárido nordestino.
O horror ...
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“Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça” — Chico Science & Nação Zumbi, em ‘Da lama ao caos’
A velha mal-assombrada do chapelão castiga sertões, veredas e as beiradas dos formigueiros metropolitanos. Tal criatura, cuja aba do chapéu sombreava o mundo de desgraça, é a imagem da fome braba na visão dos habitantes mais antigos do semiárido nordestino.
O horror deu as caras de novo.
Pelo menos 10 milhões de brasileiros voltaram a sofrer com a escassez de comida. E bem antes da pandemia do coronavírus, conforme Pesquisa do Orçamento das Famílias do IBGE realizada entre 2017 e 2018. Imagina como as coisas devem estar agora, com o fantasma da carestia na tocaia de todas as gôndolas e mercadinhos da esquina de casa.
“Pode ainda não ser o apocalipse, meu filho, mas é o fim do baião de dois como conhecemos”, salta minha mãe, dona Maria do Socorro Novais, 79, egressa de Floresta do Navio (PE), espantada com o preço do arroz. É humor do Cariri cearense, onde hoje reside, para suportar a barra e manter a sanidade. Minha comentarista de economia predileta, mestra nas quatro operações de um salário mínimo de aposentada do INSS. “Logo mais tem pequi e feijão verde com cuscuz, o inverno vai começar cedo este ano”, diz, olhar na mira da chapada do Araripe.
O Brasil voltou ao castigo da insegurança alimentar grave. E como diria, ainda em 1946, o médico, escritor e geógrafo pernambucano Josué de Castro, na obra-prima “Geografia da Fome”, isso é a marca histórica do subdesenvolvimento brasileiro. Coisa dos homens. Desigualdade programada nas pranchetas da selvageria das bolações econômicas. Neoliberalismo canibal, para dizer o mínimo, para mostrar educação e bons modos.
Foi apenas um recreio histórico. Esquece. A sombra do chapelão manchou o território nacional outra vez.
O gostinho de sair do Mapa da Fome em 2013, no governo Dilma Rousseff (PT), durou pouco. Era uma velha utopia de Josué, reciclada nos anos 1990 como ação solidária do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Em 2003, ganha ares institucionais como política Fome Zero do governo Lula, sob o comando do professor e agrônomo José Graziano da Silva, ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
“Ô Josué eu nunca vi tamanha desgraça”, como anunciava Chico Science em 1994. A mal-assombrada criatura ronda o país. Nos lares chefiados por mulheres e negros, o horror se acentua. Na zona rural do norte e do nordeste, a necessidade provoca ainda mais roncos no estômago e estragos na existência.
É duro lidar com essa memória da fome. Este retorno às tripas do subdesenvolvimento rebobina no cocuruto os saques às feiras livres do nordeste durante a ditadura. Legiões de famintos sem outras alternativas. Meu pai me pegava pelo braço e tentava disfarçar que nada estava ocorrendo no Cariri dos anos 1970. Uma nuvem de farinha encobria nossas vistas. Esquece, menino, deu para ver coisas do outro mundo. Dois ou três soldados rasos fingiam autoridade. O delegado pedia reforço contra os “comunistas”, inimigos imaginários. A mensagem de dom Hélder Câmara e uma Igreja Católica a serviço dos miseráveis corria a nação semiárida.
Tudo aquilo me fazia o avô João Patriolino contar mil e uma noites de rebuliços sobre e as mortes e os horrores vividos no “curral da fome” das Batateiras, no Crato, onde o seu irmão Francisco tombou na seca de 1932. Eram sete “campos de concentração”, espaço de isolamento dos famintos para evitar contato com a gente “limpa” das cidades grandes. A repórter Marina Rossi fez reportagem neste EL PAÍS sobre o assunto.
Nos últimos saques de famintos, vixe, meus olhos já eram de jovem repórter, estiagem de 1998, sob o governo Fernando Henrique Cardoso. Ocupações de muitas feiras e comércios no nordeste. Rendeu arenga pesada entre as autoridades de Brasília e a CNBB, uma Conferência dos Bispos do Brasil ainda ligada à proteção aos desvalidos de todas as ordens. Lembro como Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, bateu forte na pisada histórica, na defesa dos trabalhadores rurais acusados de baderneiros e agitadores. No repertório de “Pai Arraia”, como os matutos e beiradeiros o tratavam, ainda estava viva o ataque de agentes norte-americanos às Ligas Camponesas no golpe de 1964.
A velha mal-assombrada do chapelão, imagem da fome preservada graças a pesquisas de Câmara Cascudo, nunca é algo apenas folclórico ou fantasmagórico. Muito menos resultado dos desígnios de Deus. É tudo Josué, Josué de Castro, pioneiro ao politizar a fome ainda nos anos 40 do século passado. Sob exílio na França, por causa do seu pensamento, morreu de desgosto, em 24 de setembro de 1973. Foi um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Chico Science fez a sua evocação no Recife ao resgatar o mimetismo do homem que vira caranguejo e vice-versa. Da lama ao caos, do caos à lama.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Está no ar com o podcast “No Balcão”, na plataforma @orelo_audio.