De Bertha Lutz a Damares Alves, o contraste dramático do Brasil na defesa do papel da mulher
Bertha chefiou, em 1945, a delegação brasileira na ONU que fez uma defesa enfática da igualdade gênero na reunião mais importante do órgão que definiria as bases de uma nova sociedade
Quando diplomatas desembarcaram em São Francisco no início de 1945 para moldar o futuro, os barulhos dos canhões ainda não tinham cessado e o foco central das grandes potências era o de garantir a construção de uma arquitetura internacional que permitisse evitar a repetição do horror da Segunda Guerra Mundial. Mas uma delegação vinha com um segundo objetivo, tão central como a paz: garantir o papel fundamental da mulher na sociedade e transformar essa conquista em um direito. A delegação que iria encampar essa disputa nos bastidores era a do Brasil.
São Francisco, há exatos 75 anos, entraria para a história como o berço da criação da ONU. A Carta assinada na cidade americana redefiniria a segurança global, tornaria a guerra ilegal e estabeleceria a base de uma nova sociedade. Mas para a brasileira Bertha Lutz, nada disso teria sentido se a igualdade de gênero não fosse estabelecida de uma forma permanente. Filha da enfermeira inglesa Amy Fowler e do cientista Adolfo Lutz, Bertha foi a única mulher a fazer parte da delegação enviada pelo Governo brasileiro para aquele momento definidor do século XX.
Sua história já tinha sido marcada pela luta pelo voto feminino. Em 1919, ela criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher e, ao longo dos anos, buscou sempre avançar na garantia de direitos. Quando chegou o momento de redefinir o mundo, o Brasil se apresentava como uma das poucas delegações com a participação de uma mulher. De fato, dos 160 diplomatas em São Francisco, apenas quatro eram mulheres.
Se todas as mulheres que estiveram na cidade americana foram festejadas por terem sido fundamentais para a inclusão dos direitos da mulher na carta da ONU, as pesquisas mostram que não foi exatamente assim que isso ocorreu. Bertha, ao longo das negociações, descobriu que nem todas as diplomatas estavam ao seu lado. Isso, por exemplo, é o que revela um estudo realizado por pesquisadoras da Universidade de Londres ―Elise Dietrichson e Fatima Sator. Uma das resistências às propostas da brasileira veio de uma representante dos EUA, Virginia Gildersleeve, que chegou a chamar as ideias de Bertha de “muito vulgares”.
Entre os objetivos da brasileira estava o de garantir que o termo “homem” não fosse o único usado no tratado. Do outro lado da mesa, a posição era de que a palavra já significaria toda a humanidade. Para Bertha, o uso de um só termo para designar a todos não era apenas uma questão de linguagem. Mas uma maneira de garantir que as mulheres tivessem dificuldades em ter sua participação assegurada no espaço público e na tomada de decisões.
Além disso, na avaliação da delegada americana, não havia necessidade para a mudança dos termos, já que os direitos das mulheres já estavam garantidos. Para ela, a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres era realidade. “Em nenhum lugar do mundo havia igualdade completa de direitos com os homens”, respondeu a brasileira.
Bertha acabou prevalecendo e a frase “homens e mulheres” seria incluída no preâmbulo da Carta da ONU, um contribuição considerada como decisiva para toda a legislação e direito da mulher que se desenvolveria nas décadas seguintes. Também seria com seu apoio que o texto diria que não poderia haver discriminação com base na raça, língua, religião ou “sexo”.
Foi também por sua persistência que um comissão dedicada à situação das mulheres foi criada. Outra conquista foi o Artigo 8 da Carta, no qual fica estabelecido que “as Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”. Um vez mais, foi a diplomata americana quem se mostrou contrária, alegando que mulheres sempre estariam dentro da ONU.
A brasileira não seria poupada por sua luta. Parte das delegações a teriam apelidado de “Lutzwaffe”. Em pleno apagar das luzes da Segunda Guerra Mundial, a referência à força aérea nazista era mais que uma simples provocação.
75 anos depois, a disparidade de gênero no Brasil continua profunda. Um recente estudo realizado pelo Fundo de População da ONU revelou que uma a cada quatro meninas no país se casa com menos de 18 anos, uma taxa acima da média mundial e que vai ter um impacto permanente no desenvolvimento dessa pessoa. Mas se os desafios permanecem, é um outro Brasil que ocupa a cadeira do Conselho de Direitos Humanos na ONU, que voltou a se reunir nesta semana.
Um Brasil disposto a esvaziar a instituição. Um Brasil que, sob as ordens da ministra Damares Alves, luta de forma deliberada para limitar o direito das mulheres, romper consensos estabelecidos nos últimos 25 anos sobre gênero, vetar referências ao direito à educação sexual e à saúde reprodutiva. Sempre com o argumento de que tais referências abririam um brecha para legalizar o aborto.
Um Brasil que, ao adotar uma certa visão de mundo, estranhamente se une aos sauditas e outros regimes onde a mulher é ainda oprimida. Um Brasil que atrai para perto de si entidades ultra-conservadoras dispostas a denunciar o “lobby-gay” dentro da ONU.
Ao comemorar os 75 anos da Carta das Nações Unidas, parte da comunidade internacional não deixa de prestar suas homenagens ao papel de uma brasileira. Mas, nos bastidores, alerta que a reviravolta ocorrida na política externa do Brasil é a prova de que a luta por direitos deve ocorrer todos os dias. Uma prova de que não há nada garantido. Um prova de que o risco de se desmontar liberdades é permanente. E, acima de tudo, uma prova de que Bertha tinha razão em insistir em ver os direitos de bilhões de mulheres inscritos no documento que serviria de bússola para a comunidade internacional.
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