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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Na Amazônia, as bibliotecas estão sendo incendiadas

A penetração do coronavírus ao longo do rio Tapajós, no Pará, está matando os anciãos dos povos tradicionais. Com eles, a doença leva embora história e memória

Coronavírus entre indígenas
Cacique Vicente Saw, morto em primeiro de junho por covid-19, cumprimenta o então Cacique Geral do povo Munduruku, Biboi, ao lado do futuro (e atual Cacique Geral, Arnaldo), em sua aldeia em fevereiro de 2013.Vinicius Honorato
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“Saiba que no meu país, toda vez que um velho morre, uma biblioteca é incendiada”, disse o grande intelectual malinês Amadou Hampaté Bâ em 1962. A frase foi dita em resposta a um senador norte-americano que acusava africanos de serem “ingratos, analfabetos e ignorantes” em sessão do Conselho Executivo da UNESCO.

A formulação de Hampaté Bâ nos ajuda a compreender a importância do ancião para sociedades orais, que transmitem seu conhecimento e história a partir da palavra falada. O provérbio se aplica perfeitamente aos povos da floresta da Amazônia —sejam indígenas, ribeirinhos ou quilombolas— bem como todos os povos e comunidades tradicionais pelo Brasil que têm em seus velhos fontes de conhecimento, autoridade moral, orientação política e espiritual. São justamente esses alicerces que, por pertencerem ao principal grupo de risco da covid-19, estão entre os primeiros a morrer. E em série: estamos assistindo a um genocídio em tempo real.

Nos últimos dias, temos seguidamente recebido notícias que indicam a penetração do coronavírus ao longo do rio Tapajós, no oeste do Pará, inclusive no seu médio e alto curso, onde vive grande parte do povo Munduruku e os ribeirinhos de Montanha e Mangabal, que se autodenominam beiradeiros. Seis velhos Munduruku já faleceram. Jerônimo Manhuary (86 anos) em 10 de maio; Angélico Yori (76 anos) em 22 de maio; Raimundo Dace (70 anos) em 26 de maio; Vicente Saw (71 anos) em 1º de junho; Amâncio Ikõ (60 anos) em 02 de junho e Acelino Dace (77 anos) em 03 de junho.

Amâncio brigou pelo direito dos Munduruku poderem registrar seus nomes originais, e não nomes de brancos

A morte destes anciãos vai muito além da tragédia local e familiar. Como destacado em uma carta das Associações Munduruku: “Também nos preocupamos com a perda da nossa história, guardada e transmitida por nossos velhos, sábios e pajés, para quem o vírus é mais perigoso.” Os anciãos dessas comunidades representam seus repositórios de conhecimento sobre o território, a história do grupo, a fabricação de objetos e alimentos específicos, dentre outros.

Acabamos de saber que uma das principais referências para o povo Munduruku do médio Tapajós, Amâncio Ikõ Munduruku, não resistiu e faleceu hoje, 02 de junho. Estava desde sábado em uma UTI em Belém, sedado e intubado, respirando com auxílio de ventilação mecânica. Nascido em 1960 no alto rio Tapajós, chegou com a família em Itaituba no início da década de 1970. Sua história se mistura com a de Itaituba, que à época tinha apenas uma rua. Em ironia amarga, a família escolheu o local que se tornaria a Praia do Mangue por ele ser suficientemente próximo a um posto médico que poderia atender sua mãe. Além da luta pela saúde, a vida de Amâncio se caracterizou também pela luta por educação diferenciada, pelo território e pela identidade. Amâncio brigou pelo direito dos Munduruku poderem registrar seus nomes originais, e não nomes de brancos como obrigavam os cartórios, em suas carteiras de identidade. Com apoio de parceiros, fundou a Associação Pariri em 1996, que segue sendo fundamental na luta por direitos. Foi ele, ainda, que aconselhou o cacique Juarez Saw, que também deixou o alto Tapajós, a retomar parte do território ancestral Munduruku que hoje é a Terra Indígena Sawre Muybu/Daje Kapap Eïpi. “Meu pai é um grande guerreiro”, ressalta um de seus filhos, Ikõ Biatpu Munduruku. Ikõ temia que seu pai, como seu avô, morresse sozinho em Belém.

Apenas após grande insistência da família que Amâncio foi levado à Unidade de Pronto Atendimento de ambulância. Antes saudável, seu quadro se agravou rapidamente, apresentando insuficiência respiratória aguda, queda na saturação de oxigênio e comprometimento do pulmão. Como Itaituba, cidade de mais de 100 mil habitantes, possui apenas quatro leitos de UTI e todos estavam ocupados, uma solicitação de remoção aérea foi feita no dia 27 de maio. Amâncio apenas realizaria a viagem no dia 30, após ter sido intubado e reanimado manualmente até atingir um nível de saturação mínimo para poder sobreviver à viagem. Em áudio circulado pelo WhatsApp, uma médica intensivista que o atendeu denuncia a falta de equipamentos, insumos e materiais básicos. Em suas redes sociais, a assessoria de comunicação da Prefeitura do Município de Itaituba oferece outra versão, alegando que uma UTI aérea foi “imediatamente” disponibilizada para Amâncio, e que a solicitação de leito em Belém foi realizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Itaituba, ignorando a articulação fundamental da COIAB –Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira– para que isso ocorresse.

No alto Tapajós, a grande penetração do garimpo de ouro pode ser diretamente relacionada à rápida disseminação da covid-19. No dia 21 de maio, após uma reunião na aldeia Jacarezinho em que se discutiu a legalização do garimpo em terra indígena, os garimpeiros encorajaram Mundurukus de diversas aldeias próximas à cidade, inclusive crianças, a irem à cidade de Jacareacanga participar de uma carreata a favor do garimpo, contrariando os conselhos do pessoal da vigilância sanitária e do Distrito Sanitário Especial Indígena Tapajós. Isto contribuiu de forma decisiva para levar o vírus às aldeias, explicando porque o cacique Vicente, que sequer havia saído de sua aldeia, Sai Cinza, foi morto pela covid-19. Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) registraram que, em abril de 2020, a TI Munduruku figurou como a terra indígena mais desmatada do país, desmatamento esse intimamente associado ao avanço do garimpo.

Acelino Dace, que morreu aos 77 anos, em 03 de junho, por covid-19.
Acelino Dace, que morreu aos 77 anos, em 03 de junho, por covid-19.

Dispneico, com saturação de oxigênio em cerca de 60%, Martinho Borõ Munduruku está internado em isolamento no Hospital Municipal de Jacareacanga (onde não há leito de UTI). Nascido em 1943, morador da aldeia Caroçal Rio das Tropas e antigo cacique, é considerado um dos primeiros professores Munduruku, que alfabetizou muitas crianças e lutou pela educação e saúde. Grande historiador, conhece os cânticos Munduruku, e participava das assembleias promovidas pelo povo Munduruku, assim como de ações autônomas de fiscalização do território. Sempre preocupado em “contar as histórias dos antepassados para que as crianças saibam as histórias dos nossos avós,” trabalhou como relator da História dos Antigos Munduruku (1977-1979). Há mais de uma semana Martinho, que é diabético, começou a apresentar sintomas. Segundo relatos, o médico do Serviço Especial de Saúde Indígena que se encontrava na aldeia teria dito a quem apresenta sintomas parecidos com os da covid-19 que estariam com virose. Já com dificuldade de respirar, Martinho foi removido de avião até o hospital de Jacareacanga apenas na última sexta, 29 de maio. Lá, começou a ser tratado com hidroxicloroquina, o que piorou seu estado de saúde. Endossada pela Secretaria de Saúde do Pará, a aplicação deste tratamento pode ser feito mesmo em pacientes “no início de sintomas.” Considerando o quadro descrito pelo seu sobrinho, Jair Boro, que ao chegar em Jacareacanga o tio mal conseguia falar e a alta probabilidade de sua acompanhante não dominar a língua portuguesa, é de se perguntar até onde o “consentimento” dado pelo tratamento, tão enfatizado pelo Ministério da Saúde, seria válido.

Em Montanha e Mangabal, após uma grande luta contra grileiros que tentaram os expulsar violentamente de sua terra e que, em peças judiciais, os tacham de invasores, os beiradeiros tiveram uma parte de seu território histórico contemplado por um Projeto de Assentamento Agroextrativista em 2013. A decisão histórica foi embasada por amplo espectro de provas que incluíam registros feitos por viajantes desde o século XIX, antigos registros de batismo – e, fundamentalmente, pela memória coletiva do grupo, transmitida pelos mais velhos e alicerçada em marcos da paisagem. Uma das principais matriarcas dessa comunidade, Odila Braga dos Anjos forneceu relatos, fotografias e documentos que seriam fundamentais ao processo. Nascida em 1937 na localidade de Lajinha, dona Diloca, como é conhecida, tem onze irmãos e teve dez filhos no beiradão do Tapajós. É uma fonte de conhecimento sobre a história do grupo e sua intricada rede de parentesco. Agora, sua hipertensão preocupa filhos e netos mais do que nunca. Garimpeiros vivem aportando no porto da comunidade Sapucaia, onde vive dona Odila, para acessar a bica d’água que sai do morro. Não se sabe se andam armados. É possível que estejam contaminados. Conforme relatado por moradores do território, há confirmações de garimpeiros contaminados, com um caso que agora se encontra em uma UTI na cidade de Santarém.

Dona Odila Braga dos Anjos mostra fragmento cerâmico associado aos seus antepassados seringueiros.
Dona Odila Braga dos Anjos mostra fragmento cerâmico associado aos seus antepassados seringueiros.Bruna Rocha

Nos últimos 500 anos, a invasão dos territórios indígenas sempre veio acompanhada de surtos epidêmicos. A diferença agora se dá pela dimensão da degradação ambiental, sem igual, e pela rapidez do alastramento do vírus. Essa degradação está desfigurando paisagens que serviam como referências de memória para os povos da floresta que vivem no Tapajós. A chegada da covid-19 no médio e alto Tapajós agora aprofunda a degradação das singulares história e tradição destes territórios.

Uma comparação com a destruição ao patrimônio histórico e cultural gerada pelo incêndio do Museu Nacional em setembro de 2018 é possível, mas nem isso poderá abranger o abalo desestruturante e irreversível que está em curso para os povos da floresta, que frequentemente apresentam altos índices de comorbidades resultantes de processos desordenados de contato com a sociedade industrial, que incluem mudanças abruptas da dieta, atividades laborais insalubres e precariedade do atendimento à saúde.

Na ausência de equipamentos médicos para todos, basear a escolha sobre quem vive e quem morre a partir de parâmetros de idade, como tem sido discutido em contextos urbanos, ignora a centralidade dos anciãos para os povos da floresta. Jair Boro Munduruku, primeiro arqueólogo Munduruku formado pela Universidade Federal do Oeste do Pará, escreveu: “Os nossos anciãos têm grande conhecimento. Contam sobre acontecimentos envolvendo o nosso povo, sobre como as coisas eram feitas e porquê, assim como o que não poderia ser feito.” Foi o conhecimento dos anciãos que garantiu o reconhecimento territorial de diferentes povos da floresta, e que os informa sobre suas raízes. E não apenas eles: cada vez mais, pesquisadores de diferentes áreas têm consultado os anciãos locais sobre flora, fauna, história e um universo de informações. Agora, estas bibliotecas estão sendo incendiadas.

Bruna Rocha é arqueóloga pela Universidade Federal do Oeste do Pará.

Rosamaria Loures é doutoranda em Antropologia na Universidade de Brasília.

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