O Ministério da Saúde sob intervenção militar
Bolsonaro atravessa a maior tragédia sanitária das nossas vidas provocando morte, derrubando ministros populares, enfrentando governadores e prefeitos populares, e, ainda assim, avançando na ocupação bolsonarista do Executivo
Há uma pergunta no ar: Bolsonaro cairá diante de um impeachment ou os militares renderão a República através de um golpe?
Há evidências para lidarmos com esta pergunta. No Ministério da Saúde, por exemplo, o bloco militar no poder conduziu, blefando com a atual epidemia pelo coronavírus e fritando técnicos, a ocupação da pasta para finalmente transformá-la em caserna.
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Há uma pergunta no ar: Bolsonaro cairá diante de um impeachment ou os militares renderão a República através de um golpe?
Há evidências para lidarmos com esta pergunta. No Ministério da Saúde, por exemplo, o bloco militar no poder conduziu, blefando com a atual epidemia pelo coronavírus e fritando técnicos, a ocupação da pasta para finalmente transformá-la em caserna.
A queda de Luiz Henrique Mandetta não representou apenas a saída de um ministro, mas a rendição de toda uma estrutura no Executivo. Na Saúde, é hoje evidente o uso de táticas e estratégias de ocupação por parte do bloco militar no poder, ocupação que não será temporária. Encadeiam-se, abaixo, alguns acontecimentos que não estão recebendo a devida atenção da opinião pública.
Mandetta era um ministro discreto, de bom trânsito entre os poderes da República e pelas estruturas que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda que operasse retrocessos para o Sistema de Saúde, sempre o fez por dentro das regras do jogo, da institucionalidade vigente. Com a chegada da epidemia pelo coronavírus (SARS-CoV-2) ao Brasil, diante do risco sanitário e do temor de colapso do sistema, Mandetta vestiu a jaquetinha do SUS. O ministro usou as suas credenciais de operador do sistema vigente e habilidades políticas para liderar uma resposta à epidemia pelo SARS-CoV-2 que foi, no mínimo, responsável. Mandetta passou a se apoiar nas evidências científicas e experiências logísticas dos principais sistemas de saúde do mundo para planejar ações. O ministro fazia comunicados diretos e diários sobre o avanço da epidemia no território nacional e dos trabalhos de resposta do SUS. Mesmo que as notícias não fossem fáceis e as ações, acanhadas, Mandetta conduzia com segurança o processo e tornou-se popular. Sua condução chegou a ser aprovada por 76% dos brasileiros.
Se por um lado a consistência técnica e política era reconhecida pela população, por outro o presidente Bolsonaro desqualificava diariamente o ministro Mandetta. Dizia à imprensa que ninguém é insubstituível, que o ministro se comportava como uma estrela, que queria ‘aparecer’. O processo de fritura do ministro operado pelo presidente durou cerca de dois meses com capítulos diários veiculados nas mídias, criando-se uma espécie de torcida por um ou por outro. Por fim, ainda bastante popular, Mandetta caiu.
Contrariando a expectativa de muitos, que esperavam uma queda na popularidade de Bolsonaro e uma mudança no seu discurso, nada passou a ser diferente. O presidente convidou outro ministro técnico, por ser médico, Nelson Teich. Este, contudo, tinha pouco traquejo político e era um ‘corpo estranho’ às estruturas institucionais do SUS. Teich seguiu as principais diretrizes apontadas anteriormente por Mandetta, e Bolsonaro seguiu fritando-o, deslegitimando a sua condução. Teich entrou em abril e pediu exoneração em maio, tão cabisbaixo quanto entrou.
Teich não era do métier, não tinha equipe. Assumiu no dia 17 de abril e ficou com parte da equipe técnica anterior, realocou alguns nomes e nomeou outros. Na secretaria-executiva da Saúde, secretaria tida como a mais importante por ser o centro operador de toda a pasta, manteve José Gabbardo dos Reis, secretário indicado por Mandetta, durante cinco dias. Em 22 de abril, no dia do ‘descobrimento’ do Brasil e da fatídica reunião ministerial, o general Eduardo Pazuello foi nomeado no seu lugar. Com experiência em logística e ações de emergência no Exército, Pazuello vinha chancelado por ter coordenado operacionalmente a Força-Tarefa Logística Humanitária Operação Acolhida, em Roraima, que tinha por objetivo realocar no Brasil cidadãos venezuelanos em fuga do seu país natal; outra chancela importante foi a do próprio presidente Jair Bolsonaro, com quem o general tinha conversado no dia anterior, por mediação dos ministros militares do Governo.
Entre 22 de abril e 13 de maio de 2020, Teich nomeou sete militares para cargos estratégicos no Ministério da Saúde. Contraposto, nas coletivas de imprensa, quanto à militarização do ministério, o ministro respondia, contrariado, que os militares cumpriam uma função temporária durante a resposta à epidemia e logo voltariam ao Exército. Contudo, entre os secretários estaduais e municipais de saúde, já estava claro que Teich não dava as cartas no ministério, parecia perdido e não tinha respostas consistentes nas reuniões interfederativas. Em 15 de maio, Teich caiu e assumiu o ministro interino Eduardo Pazuello. Entre 15 de maio e 20 de maio, Pazuello nomeou mais 13 militares para cargos estratégicos e agora, em 22 de maio, Bolsonaro declarou vida longa ao novo ministro, pois a gestão civil do ministério “não deu certo”.
O Ministério da Saúde (MS) está hoje sob intervenção militar. É mais uma entre tantas outras pastas do Executivo federal sob ocupação militar. Entretanto, é importante chamar a atenção para algumas nuances preocupantes dessa chegada militar ao MS. Primeiro: a Saúde é historicamente ocupada por gestores civis e técnicos, quase todos médicos, alguns com formação em Saúde Pública. A segunda nuance, já indicada anteriormente, é que até mesmo neste Governo, a Saúde era, até abril de 2020, a pasta mais preservada. A condução era civil e, ainda que operasse retrocessos para o SUS, tudo era feito por dentro da institucionalidade vigente há pelo menos três décadas. A terceira nuance, a que mais preocupa, é que Bolsonaro e o seu bloco militar conseguiram operar essa ocupação sob muita tensão. O presidente atravessa a maior tragédia sanitária das nossas vidas provocando morte, colhendo e desdenhando dessas mortes, derrubando ministros populares, enfrentando governadores e prefeitos populares, e, ainda assim, avançando na ocupação bolsonarista do Executivo federal. Neste mês de maio, quando se esperava a derrocada de Bolsonaro pela sua responsabilização quanto à nossa tragédia sanitária, ele e sua tropa avançam sobre o Ministério da Justiça, sobre a Polícia Federal e sobre o Ministério da Saúde. Parece alguma criatura mítica que se alimenta de mortes e destruição, que se fortalece com a tragédia. Que forças podemos opor ao seu avanço?
Leandro Augusto Pires Gonçalves é professor da Universidade Federal Fluminense, no Instituto de Saúde Coletiva, Departamento de Saúde e Sociedade.
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