Mulheres contra o furacão antidemocrático
Por que será que estamos sempre recomeçando? Por que precisamos reconquistar direitos já conquistados?
Empurradas pelo furacão antidemocrático que passa pelo Brasil, muitas de nós, mulheres, estamos com dificuldade de enxergar luz onde só parece haver sombras. Essa sensação é compreensível diante de inúmeras ameaças de retrocesso – o endurecimento de lideranças autoritárias, misóginas e belicosas nos levam a perguntas indignadas:
Por que será que estamos sempre recomeçando? Por que precisamos reconquistar direitos já conquistados? Por que precisamos reafirmar o óbvio, como a necessidade de termos mais mulheres nos postos de decisão, ou a garantia de direitos elementares a pessoas negras, indígenas e LGBTQI+?
Neste domingo, 8 de março, é importante se fazer essas perguntas e reconhecer tais ameaças, mas não podemos esquecer que escapar do furacão de passagem exige luta, e não resignação. Requer coragem onde impera o medo. Pede esforço coletivo no lugar do recolhimento individual.
Esse é o momento em que a mobilização coletiva se torna fundamental, especialmente das mulheres, num dia simbólico. É um dia para reafirmar direitos e lutas que são de todas nós.
Sem respeito ao corpo e à mente das mulheres, não há presente minimamente civilizado. Como não há futuro democrático possível sem a paridade na política. E não há futuro sem a combinação de esperança, indignação, coragem e luta coletiva. Nas ruas.
Essa certeza é tão forte quanto as evidências de que há, sim, razões para comemorar conquistas e direitos. Apesar desta sensação generalizada de retrocesso, medo, depressão diante dos ataques à democracia.
Há exemplos de sobra na América Latina, ocorridos só no último ano. Eles fazem parte das conquistas das mulheres mobilizadas – sem isso, nada disso teria sido possível.
No México, o Congresso deu um passo histórico no ano passado pela paridade de gênero para todos os postos públicos, em todos os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em todos os níveis (organismos autônomos, municipal, estadual e federal) e em todos os cargos eletivos. A conquista se tornou especial por se tratar de uma reforma constitucional – foi o primeiro país na América Latina a ter a paridade como artigo da Constituição. Ou seja, é agora obrigatório que 50% dos cargos públicos sejam ocupados por mulheres.
Na Colômbia, Claudia Lopez foi a primeira mulher eleita prefeita da cidade de Bogotá, o segundo cargo mais importante do país. É um feito histórico, pois poucas mulheres ocuparam postos tão relevantes num país marcado por uma elite política de direita e conservadora. Melhor: Claudia é assumidamente homossexual, casada com a senadora Angélica Lozano, e carrega as pautas do meio ambiente, paz, juventude, anticorrupção e LGBTQI+.
Na Argentina, a eleição de 2019 foi marcada pela presença das mulheres e sua agenda de direitos, fruto de anos de mobilização de milhões de apoiadoras. O atual presidente argentino, Alberto Fernández, comprometeu-se com a agenda do aborto seguro, legal e gratuito – que previne a vida de milhares de mulheres todos os anos – e está construindo um governo com a perspectiva de gênero, um movimento contrário à corrente numa região cada mais conservadora e autoritária.
É um país-exemplo de como a presença das mulheres nas ruas e no debate público é crucial para a conquista de direitos – vide a aprovação da lei Micaela, que obriga a capacitação em gênero e violência contra as mulheres a todos que ocupam cargos nos três poderes. (A lei é uma homenagem a Micaela Garcia, vítima de feminicídio e participante ativa do movimento #NiUnaMenos.)
Não paramos aí.
No Chile, em meio a uma crise social profunda, quando o país virou notícia mundo afora pela escalada da violência e pela violação de direitos humanos, foram as mulheres que, de maneira criativa, mudaram a narrativa e o foco dos protestos de rua. Isso se deu a partir da La Tesis, o hino feminista que tomou todo o mundo “el violador eres tu”. A mobilização levou de volta às ruas milhares de pessoas, a maioria mulheres e crianças, que tinham se afastado devido à violência. Esse caldo de mobilização proporcionou outro feito histórico há poucos dias, com a aprovação da paridade no processo constituinte.
E no Brasil? Estamos completando dois anos do assassinato da vereadora Marielle Franco sem que o crime tenha sido solucionado e os assassinos, punidos. No entanto, milhares de mulheres foram às ruas e às urnas – o efeito Marielle fez crescer as candidaturas de feministas e de mulheres negras. A Câmara dos Deputados viu eleger a maior bancada feminina da história, com 77 mulheres. E explodiram os movimentos de apoio a candidaturas feministas. O Instituto Update, do qual faço parte, mapeou mais de 80 coletivos em todo o país dedicados ao empoderamento político de mulheres e candidaturas femininas.
No último ano, tenho viajado pela América Latina entrevistando mulheres eleitas – ação que faz parte do projeto Emergência Política Mulheres e que será lançado em junho deste ano. Nessas viagens, aprendi que a relação entre a rua e a política é fundamental para a conquista dos nossos direitos. Se ainda existe um dia que simboliza nossa luta, devemos estar lá. Foram as ruas que permitiram o sufrágio feminino. Foram os movimentos feministas que permitiram a presença das mulheres nas Constituinte de 1988 (com o lobby do batom).
É, portanto, um dever de todas nós que desejamos mais igualdade que estejamos nas ruas – com as nossas amigas, mães, irmãs, tias, filhas, avós. Oito de março é o dia em que precisamos estar presentes, mesmo que discordemos. Num ponto estaremos de acordo: queremos igualdade e o fim da violência de gênero.
Somos um dos países líderes no ranking mundial de feminicídio – com o dado agravante de vermos o aumento, no ano passado, de mais de 7% nos casos de crimes de ódio motivados pela condição de gênero, segundo dados divulgados esta semana. Assistimos a exemplos explícitos de misoginia e machismo em ataques covardes promovidos a jornalistas mulheres (como os casos de Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães). As mulheres são constantes alvos diariamente. Mas é com a demonstração de força das mulheres unidas, especialmente nas ruas, que daremos a resposta. E a resposta é simples e clara: não retrocederemos.
Pense nisso diante do furacão antidemocrático. Ele passará, mas não depende só das forças da natureza.
Beatriz Pedreira é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que fomenta a inovação política na América Latina com o objetivo de fortalecer a democracia.
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