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Chile elege seu presidente sobre os escombros das revoltas sociais

Explosão de 2019 muda de raiz o cenário político do país mais próspero da região

Elecciones Chile
Manifestante caminha em direção a veículos blindados da polícia durante os protestos contra a desigualdade econômica em Santiago, Chile, em outubro de 2019.Rodrigo Abd (AP)

Na praça Baquedano há um pedestal sem estátua. A figura equestre do general Manuel Baquedano, herói da Guerra do Pacífico, foi retirada em março. A ausência é símbolo da derrota das autoridades em evitar o vandalismo sobre a peça, alvo dos jovens que desde as revoltas de outubro de 2019 mantêm o atrito nessa área central de Santiago. As cicatrizes das desordens continuam ali, abertas: uma sede universitária em ruínas ocupada por pessoas sem teto, uma confeitaria de quatro andares saqueada, duas igrejas incendiadas e o museu Violeta Parra totalmente destruído. Os comércios estão quase invisíveis por trás das portas de metal. Para alertar os desprevenidos proliferam cartazes com a legenda “estamos atendendo”.

A destruição está nas ruas para quem quiser ver. E estrutura boa parte do mapa político que nesse domingo se enfrentará nas urnas para renovar a Presidência, a Câmara dos Deputados e metade do Senado. Nenhum dos sete candidatos ao palácio La Moneda obterá os 50% necessários para vencer no primeiro turno, de acordo com as pesquisas de 15 dias atrás (quando entrou em vigor o veto de divulgá-las), e o desempate será em 19 de dezembro. As pesquisas antecipam um duelo final entre José Antonio Kast, um ultradireitista que não cortou o legado com a ditadura de Augusto Pinochet, e Gabriel Boric, um esquerdista de 35 anos militante da Frente Ampla que fez aliança com o Partido Comunista. O primeiro promete a recuperação da paz perdida, menos Estado e mais liberdade econômica, condimentado com um discurso anti-imigração e contrário ao aborto e aos direitos das minorias; o segundo se proclama herdeiro das revoltas estudantis ―foi um de seus líderes em 2011― e oferece mudanças profundas na educação, no sistema de aposentadorias e na saúde.

Manifestantes são atingidos por um canhão de água da polícia durante um protesto contra o Governo em Santiago, Chile, na sexta-feira 1 de novembro de 2019.
Manifestantes são atingidos por um canhão de água da polícia durante um protesto contra o Governo em Santiago, Chile, na sexta-feira 1 de novembro de 2019. Rodrigo Abd (AP)

Nessa discussão o centro ficou de fora, seja escorado à esquerda, seja à direita. Seus candidatos são Sebastián Sichel, um independente que representa a direita governista do presidente, Sebastián Piñera; e a senadora democrata-cristã Yasna Provoste, filha política da desaparecida Combinação de partidos que governou o Chile entre 1990 e 2010. O eleitorado culpa essa aliança pelos males não resolvidos durante a transição pós-ditadura, como a desigualdade e a ausência do Estado em setores fundamentais. “O feito de 2019, ainda que tenha sua origem em aspectos econômicos e sociais, revelou uma crise institucional muito aguda, com o enfraquecimento dos partidos tradicionais que não canalizaram o descontentamento”, diz Octavio Avendaño, sociólogo da Universidade do Chile. Na lista de vítimas estão a Democracia Cristã e também o Partido Socialista. A direita, que teve Piñera como único representante em La Moneda, abandonará o poder em março com índices mínimos de popularidade. “Frente a isso ocorre uma explosão social que culmina com o processo constituinte no qual nos encontramos agora”, diz Avendaño.

A Assembleia Constituinte foi a resposta política ao descontentamento social. Eleita em maio de 2021, abriu as portas a forças e candidatos independentes, em sua maioria de esquerda. Muitas dessas forças se dissolveram e enfrentam problemas internos. Têm sob sua responsabilidade a redação de uma nova Constituição que substituirá a vigente desde 1980, quando Pinochet impôs aos chilenos por escrito seu legado político e econômico, ainda que reformada por volta de cinquenta vezes na democracia. A agenda da Constituinte coincide com os pedidos das revoltas, mas perdeu poder de fogo contra o descontentamento. Como explicar que um candidato como Kast esteja firme nas pesquisas, até mesmo à frente de Boric, quando há somente seis meses o Chile deu seu apoio eleitoral majoritário a candidatos totalmente opostos.

A praça Baquedano se chama popularmente praça Itália. De acordo com quem se fala, será também a praça Dignidade. A entrada à estação de metrô ainda está fechada, com pichações que lembram que já foi um campo de batalha. Um mural diz em letras amarelas “Guerra social” sob uma caveira com quepe de polícia atravessada por uma flecha. O ataque ao metrô em outubro de 2019 foi um golpe “à coluna vertebral da cidade”, diz Iván Poduje, especialista em desenvolvimento urbano e autor do livro Siete Kabezas (Sete Kabezas), um estudo sobre as consequências das revoltas nos bairros da capital. Em 18 de outubro de dois anos atrás, os manifestantes destruíram 27 de um total de 140. “O metrô teve a capacidade de consertar boa parte do dano, mas restam algumas marcas disso. O mais complexo está em 15 pontos da capital em que os serviços, os supermercados, os comércios danificados não voltaram a ser construídos. A economia que girava em torno desses bairros periféricos morreu e a insegurança cresceu”, diz.

“A explosão começou a ser vista por amplos setores como algo que trouxe mais dor, e não a transformação social”, alerta Christian Valdivieso, diretor da consultoria Criteria. Por isso, acrescenta, o cenário político já não é o de 2019: “Hoje estamos entre duas narrativas: uma transformadora e outra restauradora”. “Há dois projetos em jogo”, acrescenta Marcela Ríos, cientista política no Chile do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. “Há um setor que quer levar o país ao momento anterior à explosão; há outro que quer aprofundar o processo, mudar o modelo de desenvolvimento. Por isso essa eleição será muito significativa para as próximas décadas”.

O ânimo restaurador se encontra no voto de Kast, que não está somente na classe alta, e sim também nos que sentiram na violência nas ruas uma ameaça ao pouco que tinham. Os 15 pontos de Santiago que ainda hoje são terra arrasada o demonstram. Por isso “esse impulso que vinha das revoltas foi diminuindo”, diz Marcela Ríos. “A pandemia teve muito a ver, porque sem ela o cenário talvez fosse outro. Por exemplo, a eleição da Constituinte não seria postergada e hoje teríamos uma (eleição) presidencial com o texto terminado. Também ocorreu uma mudança de conversa, de preocupações. A revolta, para uma parte importante da população, ficou no passado”, afirma.

Se Kast é a restauração, Boric é uma mudança ao desconhecido. Agustín Squella, filósofo e membro da Assembleia Constituinte pela esquerda moderada, diz que Boric “não representa a desordem [como diz a direita em sua campanha], mas a incerteza, e nem tanto por suas propostas, como por ter se mostrado mutável e pelas desatinadas declarações públicas de alguns de seus porta-vozes”. A aliança do candidato com o Partido Comunista é o que mais afugenta seu eleitorado. Uma declaração da agrupação favorável à vitória eleitoral de Daniel Ortega na Nicarágua, onde todos os candidatos de oposição foram presos, obrigou Boric a expor seu desacordo. O Partido Comunista, entretanto, não se retratou oficialmente, como pediu o candidato. Kast, por outro lado, “está oferecendo a moeda da ordem em troca da liberdade, aproveita o amplo aborrecimento das pessoas com as contínuas manifestações de violência. Esse é o velho jogo da pior das direitas, que sabem muito bem quando propor um truque como esse”, diz Squella. Esses dois modelos de Chile se chocarão neste domingo nas urnas.

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