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Octogenários a serviço do tráfico

Um advogado de Madri usou um grupo de idosos sem recursos, que chegaram a controlar 414 propriedades, para lavar dinheiro de uma rede que movimentou quatro toneladas de cocaína

Joaquín Gil
O suposto traficante Juan Andrés Cabeza se dirige a um Porsche vermelho, em Alicante (Espanha), em agosto de 2018.
O suposto traficante Juan Andrés Cabeza se dirige a um Porsche vermelho, em Alicante (Espanha), em agosto de 2018.

O madrilenho Genaro M. tem 84 anos e, no papel, leva uma vida luxuosa. Movimenta 44 contas bancárias e consta nas atas de 25 empresas. Uma delas, a imobiliária Lacy Patrimonio SL, da qual é dono, acumula um capital social de 3,5 milhões de euros (22,6 milhões de reais) e controla 28 moradias, vagas de garagem e um ponto comercial na rua General Lacy, em Madri, segundo o último balanço da empresa. Esse octogenário, entretanto, reside desde 2008 em um imóvel tutelado da Prefeitura de Madri e recebe uma ajuda social para pessoas sem recursos, no valor de 286 euros (1.840 reais) por mês.

Genaro M. foi supostamente um dos seis laranjas de Juan Ramón García Crespo, um advogado madrilenho investigado desde 2019 na Operação Beautiful por lavar recursos da maior rede de narcotráfico já desmantelada na Comunidade Valenciana, uma região no leste da Espanha. O esquema seria comandado de Alicante pelo suposto traficante Juan Andrés Cabeza, responsável pela movimentação de quatro toneladas de cocaína, segundo o processo que tramita na Audiência Nacional espanhola, e ao qual o EL PAÍS teve acesso.

O advogado García Crespo supostamente recorreu a seis octogenários sem recursos – um deles já falecido – para legalizar o volume de recursos da rede.

Os idosos, supostamente manipulados por esse advogado que está em liberdade e será processado por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, controlavam no papel em 2018 um total de 387 empresas, as quais mantinham 414 propriedades em seu nome em Madri: apartamentos, pontos comerciais, garagens, depósitos... O esquema fictício para canalizar o dinheiro sujo do pó branco se completava com uma teia de quase 300 contas bancárias.

Aos seus 89 anos, Eugenio C. integrava a lavadora de dinheiro do advogado. Apesar de receber menos de 8.100 euros (52.200 reais) por ano em aposentadoria, esse alicantino controlava em 2017, no papel, um total de 264 pessoas jurídicas e 135 imóveis. E hoje, como so outros idosos que emprestaram seu nome à trama do traficante Cabeza, ele está sendo processado por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. “Faz muito tempo que não vejo esse senhor. Tudo isso acabou. E ponto. Adeus”, esquiva-se por telefone esse homem acusado de lavar 120.000 euros (cerca de 774.500 reais).

Outro octogenário, José Luis G., que supostamente lavou 314.000 euros, admite que o advogado lhes pagava para usar sua assinatura no cartório, mas interrompe a conversa ao ser perguntado sobre os detalhes. “Prefiro não falar. Adeus.” Uma atitude de receio que é compartilhada por Genaro M., de 84. “Vou falar com o García Crespo antes de responder a suas perguntas”, responde este último, de um asilo municipal no centro de Madri.

A engrenagem por onde circulou o dinheiro da cocaína incluiu também um octogenário já falecido, que chegou a possuir 32 imóveis, 13 veículos de luxo e duas embarcações avaliadas em mais de meio milhão de euros. Essa estrutura estava em nome da locadora de veículos Sail Rent S. L., dona de ativos no valor de 2,4 milhões de euros, supostamente usada pelo advogado García Crespo para legalizar o dinheiro do traficante Cabeza. O falecido testa-de-ferro lavou 756.140 euros (4.88 milhões de reais).

O suposto traficante Juan Andrés Cabezaem um bar em Valência, em junho de 2018.
O suposto traficante Juan Andrés Cabezaem um bar em Valência, em junho de 2018.

Através de outra empresa em nome de um laranja de 80 anos, a imobiliária Volga&Volga, o advogado controlou o iate Lady Lu, que está atracado no porto de Denia (província de Alicante) e cujo proprietário real era o traficante, que o alugava por 3.500 euros por dia, segundo a investigação, que avalia o preço da embarcação em 500.000 euros. O inquérito aponta que o advogado recorria sempre aos mesmos cartórios e endereços para domiciliar sua teia de testas-de-ferro. Também que estes lhe concediam poderes. E que o advogado conseguia que os idosos sem recursos deixassem sua assinatura em cartórios e bancos em troca de 100 euros (cerca de 650 reais), segundo a confissão de um deles à polícia.

García Crespo, de 65 anos, gozava uma vida luxuosa, que contrastava com sua renda declarada, segundo a investigação. Apesar de morar em um imóvel de mais de 500 metros quadrados no bairro madrilenho de La Moral, onde estacionava um Porsche Cayenne e uma Ferrari F430, o letrado não declarou rendimentos do trabalho, atividades econômicas ou impostos de patrimônio à Agência Tributária entre 2011 e 2014. Tampouco apresentou contracheques ou recibos de aluguel, segundo as investigações da Operação Confiança, já encerrada, na qual García Crespo esteve imputado em 2018 pela lavagem de 3,7 milhões de euros. “Não há constância de uma fonte legal de renda declarada”, concluem os investigadores.

O advogado, além disso, controla atualmente 16 propriedades, entre moradias e escritórios, que incluem seu sobrado de La Moral, outros 14 imóveis em Madri e um terreno na costa da região de Múrcia. E aparece conectado a 53 contas bancárias.Os investigadores o acusam de lavar supostamente mais de dois milhões de euros da trama do traficante Cabeza.

García Crespo foi detido em setembro de 2019 em sua casa de La Moral, onde guardava 40.800 euros em espécie distribuídos em envelopes azuis e num cofre. Os agentes também viram quatro carros de luxo no local.”Crespo é o principal cérebro das operações de lavagem de capitais da rede criminosa investigada”, conclui o inquérito policial que levou à detenção deste advogado, que não respondeu às perguntas do EL PAÍS.

Uma rede internacional com 135 imputados

A Operação Beautiful, onde caíram em 2019 o advogado Juan Ramón García Crespo e o suposto traficante Juan Andrés Cabeza, acumula 135 imputados. Uma multidão sob suspeita de importar cocaína da América do Sul para introduzi-la na Europa. E que recorria a uma linguagem em chave, codificada, e a celulares criptografados com o sistema Encrochat para burlar os investigadores.
Com tentáculos na Colômbia, Portugal, Suécia e Romênia, o azeitado mecanismo de Cabezafuncionou até 2019 como uma organização hierárquica, escalonada. As engrenagens criminosas deste traficante, que guardava em sua casa 1,5 milhão de euros em caixas de sapatos, incluía uma filial especializada em vuelcos(roubara droga de outros traficantes), ameaças, extorsões, ajustes de contas, sequestros e assassinatos. Um dos homens do traficante não pôde ser detido em setembro de 2019, quando a rede foi desarticulada. O motivo: havia sido baleado uma semana antes em um shopping center da província de Alicante.

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