Partido de extrema direita espanhol tece aliança anticomunista na América Latina

Vox lançou manifesto que alerta para suposto “avanço comunista” na Ibero-América e reuniu nomes como Eduardo Bolsonaro, no Brasil, e Keiko Fujimori, no Peru

O líder do Vox, Santiago Abascal, assiste ao desfile militar de 12 de outubro no Passeio de La Castellana, em Madri, durante o Dia da Festa Nacional espanhola.Chema Moya (EFE)

Fundamentalistas católicos e evangélicos, neoconservadores e ultraliberais, populistas de direita e nostálgicos das ditaduras militares compõem a aliança anticomunista que o partido espanhol Vox está tecendo na América Latina. Eduardo Bolsonaro (filho e herdeiro político do presidente brasileiro), Keiko Fujimori (ex-candidata presidencial no Peru) e José Antonio Kast (líder do Partido Republicano chileno, que se opôs à revogação da Constituição legada por Pinochet) são algumas das figuras mais destacadas deste conglomerado heterogêneo, unido por seu visceral rechaço aos governos de esquerda, tanto os autoritários como os democráticos.

A ponta de lança do Vox foi a chamada Carta de Madri, um manifesto que alerta para o suposto “avanço do comunismo” na Ibero-esfera (o nome com o que o partido radical de direita, sempre atento ao marketing, rebatizou a Ibero-América), uma parte da qual já teria sido “sequestrada por regimes totalitários de inspiração comunista, apoiados pelo narcotráfico, sob o guarda-chuva do regime cubano”. Santiago Abascal, presidente do Vox, anunciou seu propósito de dotar a carta, que atraiu mais de 8.000 adesões, de uma “estrutura permanente e um plano de ação anual” – ou seja, passaria de ser um mero chamariz para se tornar uma nova organização internacional: o Foro de Madri.

Seu objetivo é se tornar uma alternativa ao Foro de São Paulo e ao Grupo de Puebla, as duas plataformas da esquerda latino-americana: a primeira reúne força políticas e sociais, do Partido dos Trabalhadores brasileiro ao Partido Comunista de Cuba; e a segunda, um punhado de políticos de perfil majoritariamente social-democrata, como Alberto Fernández, Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales, Rafael Correa, Pepe Mujica e José Luis Rodríguez Zapatero.

Em vez de montar uma aliança de partidos, Abascal está recrutando personalidades a título individual, e isso lhe permitiu aproximações surpreendentes, como o do ex-presidente colombiano Andrés Pastrana, que no último dia 10 participou através de uma gravação do Viva 21, a festa que o Vox promoveu num pavilhão de Madri, e em junho passado discursou numa cúpula telemática do ECR, o grupo do Parlamento Europeu do qual o Vox participa em associação com os ultraconservadores poloneses do Lei e Justiça e os húngaros de Viktor Orbán. A aproximação de Pastrana com o Vox causou surpresa e mal-estar no Partido Popular espanhol, já que o político colombiano é o atual presidente da Internacional Democrática de Centro (IDC), da qual Pablo Casado, líder do PP, é o vice-presidente. Pastrana também esteve na recente convenção do PP, junto com o ex-presidente mexicano Felipe Calderón.

O presidente do Partido Popular, Pablo Casado (centro), acompanhado pelos ex-presidentes Felipe Calderón (do México) e Andrés Pastrana (da Colômbia), durante a convenção nacional do PP em Cartagena. Marcial Guillén (EFE)

Como embaixadores especiais para a América Latina, o Vox utiliza o eurodeputado Hermann Tertsch e o deputado espanhol Víctor González Coello. O primeiro aproveita a infraestrutura da qual dispõe como parlamentar em Bruxelas e terceiro vice-presidente da delegação europeia na Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana (Eurolat), que reúne deputados do Parlamento europeu e de 23 países da América Latina. Além disso, o grupo ultraconservador ECR montou seu próprio Eurolat, do qual Tertsch é presidente. Já Coello, vinculado a grupos fundamentalistas católicos, é porta-voz do Vox na Comissão de Relações Exteriores do Parlamento espanhol.

Nos últimos meses, os dois parlamentares participaram como convidados da posse do novo presidente do Equador, o conservador Guillermo Lasso; foram recebidos na Colômbia pelo ex-presidente Álvaro Uribe e em Lima por Keiko Fujimori, filha do ex-presidente peruano condenado a 25 anos de prisão por assassinato, sequestro e corrupção. Sua primeira missão na América foi em janeiro de 2020, quando se reuniram em La Paz com ministros da então presidenta interina Jeanine Áñez, que substituiu Evo Morales depois de uma turva operação que acabou com a renúncia dele. Queriam na ocasião solicitar provas de que o partido esquerdista espanhol Unidas Podemos, então prestes a entrar no Governo espanhol, teria recebido financiamento ilegal.

O outro instrumento utilizado pelo Vox para desembarcar na América Latina foi o Disenso, uma fundação presidida por Abascal. Embora o Vox faça campanha contra o financiamento público das fundações partidárias, montou a sua própria para se beneficiar das subvenções distribuídas em função do número de votos e assentos parlamentares obtidos. À frente da fundação, prestando suporte técnico à aventura americana de Abascal, está Jorge Martín Frías, ex-diretor de formação do FAES (a fundação do PP) e assessor da Prefeitura de Madri no mandato de Ana Botella.

O desembarque do Vox na região teve um sério revés no começo de setembro no México. Abascal foi ao Senado mexicano como convidado a um ato contra o aborto e lá aproveitou para apresentar a Carta de Madri. Seu partido informou que 14 senadores do Partido Ação Nacional (metade da sua bancada) e três deputados da mesma agremiação haviam aderido, além e dois parlamentares do Partido da Revolução Institucional, ambos na oposição ao presidente centro-esquerdista Andrés Manuel López Obrador. A notícia provocou um terremoto político no México: os dois deputados do PRI, Lorena Piñón e Manuel Añorve, desmentiram o Vox, enquanto o PAN se desvinculou da iniciativa, recordando que seu sócio na Espanha é o PP. Duas das senadoras que assinaram a carta disseram ter cometido “um erro” e pediram desculpas. Os meios de comunicação mexicanos haviam divulgado um tuíte de Abascal, em 13 de agosto, coincidindo com o 500º aniversário da destruição de Tenochtitlán, no qual se proclamava “orgulhoso” da colonização do México: “A Espanha conseguiu libertar milhões de pessoas do regime sanguinário e de terror dos astecas”, escreveu. Uma visão radicalmente contrária à do papa Francisco, que pediu desculpas pelos “erros muito dolorosos” cometidos durante a colonização.

Entre os líderes americanos que desfilaram pela tela do Viva 21 não havia nenhum mexicano. Mas lá estavam, além de Pastrana, Keiko Fujimori, Kast, Eduardo Bolsonaro e o senador norte-americano Ted Cruz, republicano do Texas. Abascal já haviam encontrado os dois últimos na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) realizada em fevereiro de 2020 em Maryland, com encerramento a cargo do então presidente Donald Trump. Cruz, representante da ala mais conservadora do Partido Republicano, com um discurso antiabortista, anti-imigração e a favor da pena de morte, teve que ficar de quarentena após se reunir com o político espanhol, que deu resultado positivo num exame de coronavírus. Eduardo Bolsonaro, encarregado das relações exteriores do clã familiar e fiel seguidor do seu pai nos comentários homofóbicos e machistas, se tornou desde então um dos melhores aliados do Vox, o que não exclui certa rivalidade: Abascal preferiu viajar ao México no começo de setembro em vez de participar de uma conferência conservadora que, como franquia da norte-americana, Bolsonaro tinha montado em Brasília com o filho de Trump.

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