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Planos de Biden perdem força seis meses depois de assumir a presidência

Projetos de destaque como as reformas policial e migratória, assim como a lei de voto, perdem fôlego enquanto outros, como o de infraestrutura, encolhem

Joe Biden
Joe Biden em 23 de junho, no funeral do ex-senador John Warner, na catedral de Washington.POOL (Reuters)
Amanda Mars

Os primeiros 100 dias de Joe Biden na Casa Branca pareceram uma exalação. Ao assumir o poder Executivo, o novo presidente dos Estados Unidos lançou uma insólita bateria de decretos e memorandos com os quais enterrou grandes símbolos da era Donald Trump: decidiu o retorno ao Acordo do Clima de Paris, ordenou a paralisação da construção do muro na fronteira com o México e eliminou o veto a pessoas transgênero no Exército, entre outras medidas. Também lançou um plano de reativação da economia de 1,9 trilhão de dólares [cerca de 9,92 trilhões de reais] e anunciou outros programas de apoio social que evocavam o New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Em relação ao exterior, mudou radicalmente o tom em relação aos países aliados, declarou a volta do multilateralismo e choveram-lhe felicitações da Europa pela ousadia de seus projetos.

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O furacão Biden, no entanto, começou a perder força à medida que foi se aproximando dos primeiros seis meses de mandato. Vários de seus grandes projetos legislativos, como as reformas migratória e policial ou as medidas de controle de armas, ficaram paralisados depois que chegaram ao Congresso devido à frágil maioria democrata. A lei de acesso ao voto naufragou em junho no Senado. E o ambicioso plano de infraestrutura continua em negociação. Biden anunciou há um mês um pré-acordo bipartite de orçamento menor (1,2 trilhão, frente aos 2,3 trilhões iniciais), mas esta semana ainda se tenta fechar os últimos pontos em aberto. Fracassou inclusive a meta de vacinação contra o coronavírus que o democrata havia estabelecido para 4 de julho, coincidindo com o Dia da Independência, e os Estados Unidos sofrem um novo surto de casos da variante delta. A lua de mel, em resumo, terminou.

Sorri ao presidente o andamento da economia, que experimenta as maiores taxas de crescimento em 40 anos, mas crescem os temores com a inflação, que atingiu o maior nível desde 2008. Na segunda-feira, o presidente disse que se trata de um aumento de preços “temporário” e “esperado”.

A preocupação com o futuro da agenda de Biden começa a crescer nas fileiras mais progressistas do Partido Democrata diante do muro de contenção do Partido Republicano no Capitólio. A congressista californiana Ro Khana, que foi membro da campanha eleitoral do esquerdista Bernie Sanders, referiu-se ao problema com estas palavras em recentes declarações à agência Associated Press: “Há muita ansiedade (...), esta é a questão para o presidente Biden: que tipo de presidente quer ser?”.

A ambição de Biden de chegar a acordos com os republicanos ainda não se cristalizou em quase nada. Para a nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez, uma das novas estrelas do partido, “o romantismo sobre o bipartidarismo [no sentido de consensos entre as duas grandes formações] vem de uma época dos republicanos que simplesmente não existe mais”. O líder destes no Senado, Mitch McConnell, concordou com esta abordagem em uma declaração feita há algumas semanas. “A era do bipartidarismo acabou”, decretou.

O episódio da nova lei do voto, uma das grandes batalhas políticas desta legislatura, representa um bom exemplo dos problemas que aguardam Biden a partir de agora. Diferentemente do plano de resgate, esta não é uma legislação que possa ser aprovada com maioria simples no Senado, pois exige o apoio de 60 dos 100 senadores. Os democratas controlam a Câmara de Representantes e estão igualados em 50/50 na Câmara Alta, mas neste último caso a vice-presidenta do país, Kamala Harris, pode emitir o voto de desempate quando o projeto em discussão necessitar apenas da maioria simples.

Não é o caso da chamada Lei do Povo, a reforma eleitoral de maior relevância nas últimas décadas. Em março passado, os democratas aprovaram a primeira versão na Câmara, com a finalidade de anular medidas impostas em vários Estados republicanos nos meses anteriores que, na prática, limitam a participação eleitoral dos desfavorecidos e das minorias. Na terça-feira, no Senado, a norma nem sequer chegou à fase de votação final no plenário. Os 50 republicanos bloquearam inclusive seu debate, ao votarem unidos e impedirem a maioria qualificada de 60 senadores.

Essa maioria é uma norma estabelecida pelo filibusterismo, conceito que é preciso ter em mente para entender como será o restante do mandato de Biden. Trata-se de uma tática parlamentar arcaica e muito pitoresca, que permite a qualquer senador apresentar uma questão de ordem, obstruindo assim a votação de um determinado projeto de lei. Antigamente, para eternizar o debate e evitar a votação, os legisladores passavam horas discursando sobre qualquer assunto ―há casos famosos, como o de Strom Thurmond em 1957, que pronunciou um discurso de 24 horas e 18 minutos. Hoje, a parte teatral se perdeu. Atualmente, um senador pode solicitar a obstrução, que só pode ser revertida com três quintos dos votos do plenário (60 senadores).

Assuntos como o pacote de resgate pós-covid-19, entretanto, ficam blindados do filibusterismo porque se recorre a um procedimento de conciliação orçamentária de urgência. Também as nomeações de juízes da Suprema Corte, por exemplo, passaram a ser aprovadas por maioria simples desde que os republicanos alteraram as normas em 2016 ―usaram a chamada “opção nuclear”, no jargão parlamentar. Mas quando uma lei precisa arrancar alguns apoios dos republicanos, o caminho se torna sinuoso.

A disputa entre os democratas sobre a conveniência de acabar com o filibusterismo ganhou protagonismo enquanto Biden trata de continuar ativando sua magia de veterano senador, cargo que ocupou durante décadas e no qual ganhou fama de articulador de acordos com a oposição.

A pressão cresce para que os democratas levem adiante capítulos importantes da pauta, como as infraestruturas, mediante um procedimento de conciliação orçamentária de urgência, algo que depende em boa medida dos senadores democratas Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, o mais centrista da Câmara, e Kyrsten Sinema, do Arizona. Ambos se opõem a acabar com as normas que permitem o filibusterismo.

Os democratas da Câmara Baixa conseguiram na semana passada um consenso sobre a proposta de investimentos e gastos públicos no valor de 3,5 trilhões de dólares, com medidas para impulsionar a luta contra a mudança climática e a pobreza, reforçar o programa de saúde pública para a terceira idade (Medicare) e outros objetivos decisivos da agenda Biden. Mas não têm o aval de seus sócios democratas do outro lado do Capitólio. A capacidade negociadora de Biden tem mais um semestre complexo pela frente.

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