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Nem cantar nem praticar esportes. Até onde pode chegar o extremismo religioso com as meninas

No Afeganistão houve uma tentativa recente de proibir o canto público de meninas a partir de 12 anos. Foi preciso voltar atrás. Era mais uma manifestação da vontade de silenciar as mulheres

Ángeles Espinosa
Meninas em uma madraça (escola corânica) em Kandahar, Afeganistão, em 27 de outubro.
Meninas em uma madraça (escola corânica) em Kandahar, Afeganistão, em 27 de outubro.Marcus Yam (Getty)

Cantar é muito mais do que uma atividade lúdica. Para o melífago-regente, uma ave endêmica da Austrália, significa a diferença entre sobrevivência e extinção. À medida que sua população diminui, os machos perdem seus modelos para aprender os trinados com os quais atrair as fêmeas e preservar a espécie. Entre os humanos talvez não seja tão dramático, mas o canto ajuda a expressar a alegria e a afastar as tristezas, a espantar a solidão ou a fortalecer o grupo. Por isso, as mulheres afegãs levantaram suas vozes quando tentaram proibi-las de cantar em público a partir dos 12 anos. A intenção de silenciar as mulheres é uma velha aspiração de extremistas religiosos que vai além da música e das fronteiras do Afeganistão.

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No início de março, o diretor-geral da Educação de Cabul instruiu o corpo docente das escolas públicas e privadas a impedir que meninas com mais de 12 anos cantassem em eventos escolares, exceto para audiências exclusivamente femininas. Sua carta também especificava que, a partir dessa idade, as alunas não podiam mais ter um homem como professor de música. A indignação generalizada com a qual muitos afegãos reagiram, sobretudo muitas afegãs, forçou o Ministério da Educação, liderado por uma mulher, a desautorizar o responsável pela medida.

Escritoras, ativistas sociais e meninas anônimas condenaram a medida postando vídeos nas redes sociais em que entoam canções tradicionais como uma reivindicação de seu direito. Para muitos afegãos, incluindo a ex-vice-presidenta e ativista de direitos humanos Sima Samar, a controversa decisão lembrava o regime do Talibã (que foi afastado do poder pela intervenção dos EUA em 2001). Sob seu Governo, foi proibida a música e a ida das meninas à escola. O assunto é especialmente delicado ante a possibilidade de o Talibã entrar no Governo como resultado das negociações de paz em curso. Mas a obsessão com a voz das mulheres não é exclusiva desses extremistas sunitas.

No vizinho Irã, que se declara uma república islâmica e tem o islamismo xiita como religião de Estado, as mulheres estão proibidas de cantar ou interpretar sozinhas em público desde a revolução de 1979, que levou os islamistas ao poder. As cantoras iranianas não tiveram escolha a não ser o exílio ou o silêncio. Embora desde o início deste século a restrição tenha sido relaxada, permitindo que as solistas atuem em apresentações somente para mulheres, mas ainda não podem se apresentar para públicos mistos ou na televisão. Os clérigos mais conservadores argumentam que a voz feminina é tentadora e pode induzir os homens a pecar.

Apesar de suas diferenças doutrinárias e políticas, a vizinha (e majoritariamente sunita) Arábia Saudita manteve uma proibição semelhante até as recentes reformas sociais introduzidas pelo príncipe herdeiro Mohamed Bin Salman. “Não abram a porta ao diabo”, alertou o grande mufti do reino em 2017 antes dos primeiros shows organizados no país sob a égide do poderoso filho do rei e que levaram ao palco cantoras como Mariah Carey e Nancy Ajram.

Os especialistas consultados concordam em que no Corão não há proibição explícita de que as mulheres cantem nem nos Hadiths (ditos atribuídos a Maomé). O que acontece é que aqueles que interpretam a lei islâmica (até agora quase exclusivamente os homens) veem a mulher como uma fonte de perigo moral para a sociedade, seja pela voz ou o corpo. Por isso, tradicionalmente optam por restringir sua liberdade. Outros teólogos, e cada vez mais teólogas, entretanto, argumentam que, como seres humanos, as mulheres podem tomar as próprias decisões.

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O tabu da voz feminina não é exclusivo das interpretações mais conservadoras do islã. Os judeus ultraortodoxos também a julgam pecaminosa, só que optam por proibir os homens de escutar as mulheres, o que na prática tem as mesmas consequências. Essa também não a única restrição à sua visibilidade pública. A prática de esportes é outro campo habitual de batalha, muitas vezes ligada à exigência de se vestirem modestamente. E isso não só nas sociedades islâmicas. Em países como a Índia, os nacionalistas hindus atualmente criticam as meninas que usam jeans rasgados que deixam ver os joelhos.

Tal como acontece com a música, os obstáculos ao esporte resultam de normas obsoletas e também de costumes profundamente enraizados que até agora foram justificados na cultura e na religião. Sem a necessidade de legislação para impor essas restrições, o peso das tradições e do sistema patriarcal afastaram as mulheres do exercício físico e, portanto, das competições internacionais em muitos países de maioria muçulmana.

Na Arábia Saudita até cinco anos atrás nem sequer havia aulas de ginástica nas escolas para meninas e mesmo jogar basquete era uma atividade clandestina. No caso do Irã, onde a prática de exercícios é possível de forma segregada, corredoras, jogadoras de futebol e outras esportistas têm que usar calças compridas, batas até os joelhos e lenço, o que não é permitido pelos regulamentos das modalidades. Suas nadadoras e ginastas só podem competir perante público feminino e juízas. Esses obstáculos prejudicam tanto sua capacidade de enfrentar outras atletas como sua reputação em circuitos esportivos.

Feministas muçulmanas insistem em que a religião é usada como álibi. “O extremismo não tem a ver com religião, mas com o poder político”, afirma Sussan Tahmasebi, cofundadora e diretora da Femena, uma organização que apoia feministas no Oriente Médio. Durante um recente debate virtual, Tahmasebi lamentou que o movimento de mulheres progressistas na região tenha sido marginalizado pelo apoio da comunidade internacional a grupos religiosos que defendem a paz, ao invés de direitos.

Para as afegãs, poder cantar é um indicador de sua liberdade e de seus direitos como cidadãs. Seus vídeos em defesa desse direito são também um pedido de ajuda para protegê-las da extinção social com que os fundamentalistas as ameaçam. A ausência de suas vozes seria ainda mais triste do que o silêncio dos trinados do melífago-regente australiano.

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