Yanis Varoufakis: “Na UE há tanta democracia quanto oxigênio na Lua: zero”
O ex-ministro das Finanças grego acredita que não estamos mais no capitalismo, mas em um tecnofeudalismo mais próprio de uma distopia
Ministro, ativista, político, economista, professor, ensaísta de sucesso e hoje, em uma nova reviravolta que adiciona uma nova camada à sua figura carismática e contestatária, Yanis Varoufakis se tornou romancista. Provavelmente nunca um ministro das finanças tão breve ―ocupou o cargo entre janeiro e julho de 2015, na fase mais dramática da Grécia contemporânea― durou tanto tempo no imaginário da opinião pública, mas aí está de novo, com sua estética de camiseta, jovialidade e muito humor, tentando cavalgar um movimento internacional de esquerda e com seu romance, Otra Realidad (ainda sem edição no Brasil), prestes a ser publicado na Espanha. Conversou com o EL PAÍS por videoconferência de Atenas, onde é um dos nove deputados de seu pequeno partido, MeRA25.
Pergunta. Seu livro cria uma realidade alternativa que nasce para ser escrava do mundo e não o contrário. Somos escravos?
Resposta. Sim e não. A essência humana é que sempre temos a capacidade de nos libertar, mesmo que estejamos no meio da pior escravidão, e isso não pode ser destruído por nenhum tipo de autoritarismo. Se agora que completo 60 anos continuo sendo marxista e Marx segue me importando, é por causa de sua descrição do capitalismo. Ao contrário dos comunistas que o seguiram, ele era um verdadeiro liberal e o que lhe interessava é que o capitalismo simultaneamente nos libertava e nos escravizava. Nos liberta porque cria uma maquinaria que trabalha para nós, mas que acabamos alimentando e nos escraviza. Por exemplo, o Google hoje nos liberta da estupidez porque temos acesso a todas as informações do mundo, mas ao mesmo tempo nos escraviza porque alimentamos sua maquinaria publicitária sem perceber.
P. Então continua a se definir como um marxista. A palavra ainda serve?
R. Sempre me defini como marxista libertário, estranho, inconsistente, no sentido de que discordo de mim mesmo, como Marx. Sem ele, eu não entenderia o capitalismo nem os mercados.
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Clique aquiP. Como interpreta a crise provocada pela pandemia?
R. Não é uma nova crise. O verdadeiro começo foi a crise financeira de 2008, que foi o 1929 da nossa geração. Sabemos o que 1929 provocou em todo o mundo até desembocar na Segunda Guerra Mundial e ambos são muito semelhantes. A única diferença é que em 2008 os bancos centrais injetaram uma grande quantidade de dinheiro para salvar os bancos privados e esse dinheiro criou uma espécie de capitalismo de Estado, um feudalismo de Estado que chamo de tecnofeudalismo e que consiste em aplicar austeridade para as massas e ao mesmo tempo muito dinheiro do Estado, ou seja, socialismo, para os banqueiros e as corporações. E nisso veio o covid-19. E o que os Governos fizeram? Mais do mesmo: mais dinheiro do Banco Central para o setor financeiro e um pouco de ajuda à população para se manter, não para empoderar os que não têm poder. Portanto, a pandemia vai ser uma extensão e um aprofundamento do que aconteceu nos últimos 12 anos.
P. Não acredita que a reação da UE hoje foi mais rápida e proativa do que em 2008?
R. Melhoraram na propaganda em comparação com aqueles dias malucos de 2010. Mas quando você vai para a realidade, encontra fumaça, miragens, ar. Em março, Sánchez, Mitsotakis e Macron pediram o eurobond, a união fiscal efetiva e uma dívida europeia. Mas Merkel disse nein, como em 2010 e o resultado são fundos de recuperação, que são como fundos estruturais reforçados, e já sabemos para onde estão indo, para as grandes empresas, grandes corporações, enquanto as pequenas empresas, as médias empresas, os jovens e os desempregados não conseguirão nada.
P. Talvez trabalho?
R. Alguns sim, mas macroeconomicamente é insignificante. Por não termos união fiscal, deixamos a distribuição desse dinheiro aos Governos e isso gera corrupção, mais toxicidade entre holandeses, alemães, gregos, espanhóis... Fomos apontados com o dedo: olhem o que fizeram com o dinheiro que demos a vocês. Não é uma boa receita para unir os europeus.
P. Qual é a sua solução para a Europa?
R. Para criar uma união, você precisa de um Tesouro comum, uma dívida comum, um parlamento real e um verdadeiro Governo federal que você possa destituir, não uma Ursula von der Leyen que ninguém pode destituir e que ninguém nomeou, exceto Merkel e Macron. As pessoas dizem que a UE tem um déficit democrático, mas não é esse o caso, o que ela tem exatamente é zero democracia. É uma zona sem democracia. Se digo que há déficit de oxigênio na Lua, não é verdade, não há déficit de oxigênio na Lua, simplesmente não há oxigênio. E digo isso como europeísta, quero democratizar a UE.
P. Acredita que o euro ainda está em risco?
R. Absolutamente. Não é sustentável. A Europa é rica, mas temos um sistema insustentável que é mantido porque existe uma vontade política muito forte para isso. A cada dia que passa a riqueza europeia diminui, estamos desperdiçando-a e criando mais tensões. Depois da pandemia teremos mais diferenças: auge do Vox na Espanha; os holandeses olhando para os espanhóis ou gregos com maior receio; Hungria, Polônia e República Tcheca cada vez mais direitistas, racistas e antieuropeias, mais abertas a Putin e à democracia iliberal. As forças centrífugas ficam mais fortes. Vamos sair desta pandemia mais desiguais ainda do que entramos.
P. Quem está se saindo melhor no mundo?
R. A China, claramente. Sou democrata e liberal, sou marxista libertário e se estivesse na China estaria preso, sejamos claros, é um regime muito autoritário e cada vez mais. Mas eles são muito bons em administrar seus assuntos. O segredismo e a opacidade do regime fizeram a princípio com que a pandemia se alastrasse, mas uma vez que reagiram fecharam tudo e erradicaram, criaram seus hospitais, sua vacina, enquanto a Sanofi na França ou o Instituto Pasteur, que têm séculos de experiência, não tiveram sucesso. Conseguiram direcionar o investimento. A educação na China é próspera, produzem engenheiros, especialistas em línguas, inteligência artificial, fazem pesquisas que nós não fazemos na Europa, tecnologia de baterias... Estão a anos-luz de distância da Europa porque estão investindo. E também estamos atrás dos Estados Unidos, que é um país de grande desigualdade, mas com espaços em Seattle, Texas ou em Silicon Valley, onde muito dinheiro é investido no futuro.
P. As grandes empresas de tecnologia nos proletarizam, diz em seu livro.
R. Os gigantes da tecnologia conseguiram expandir a força de trabalho, transformando cada usuário em um trabalhador grátis. Diante de uma montadora, por exemplo, no Google, Facebook, Apple e Amazon, a maior parte da produção de capital é realizada pelos consumidores. Cada vez que saímos com o telefone, o Google atualiza seus mapas e os torna mais úteis. Você ganha um produto grátis, é claro, mapas ou o que for, mas eles captam sua atenção e vendem seus dados para os anunciantes, então nos transformaram em proletários sem sequer pagar. É uma grande mudança na divisão do trabalho. Somos todos produtores de capital e apenas uma pequena parte recebe um salário. Quando você entra no Facebook ou na Amazon, você sai do capitalismo. Senti isso fisicamente quando visitei o Google. Você entra em uma empresa mais próxima da União Soviética: há uma estética, um politburo, uma ideologia. Há uma KGB no Google ―muito amável, muito agradável, mas existe uma política sobre o que você pode dizer e o que não pode. É como uma ficção científica, como se você estivesse andando na rua e tudo fosse propriedade de só uma pessoa. Se ela não quiser que você veja algo, você não verá. E se a empresa quiser que você veja, você verá. Essa é a vida no Facebook, na Amazon, no Google. Isso não é competição, isso não é capitalismo, isso é feudalismo, uma forma distópica de ficção científica de feudalismo de alta tecnologia. Não estamos mais no capitalismo, temos que encontrar outra palavra e eu chamo de tecnofeudalismo.
P. Os setores de tecnologia e saúde se beneficiaram com a pandemia. Quais são os riscos?
R. Existe uma grande concentração de poder. As três empresas que estão produzindo as vacinas têm capacidade para extrair enormes somas de dinheiro da humanidade. Foram capazes de produzir as vacinas tão rapidamente porque Trump deu a elas 10 bilhões de dólares (cerca de 55,5 bilhões de reais) e, no entanto, não devolverão nada. Estão usando dinheiro do Estado para criar uma imensa capacidade para extrair dinheiro do resto do mundo. Quando a vacina contra a poliomielite foi inventada, na década de cinquenta, a patente foi dada ao mundo porque crianças estavam morrendo. Hoje isso não está acontecendo. Portanto, as grandes empresas de tecnologia, saúde e a indústria de defesa estão ganhando mais poder sobre o resto da população do que ninguém teve na história da humanidade. E seus interesses não são os mesmos do resto da humanidade. Há uma guerra entre os interesses dos mais fortes e os da maioria.
P. Tem alguma relação com Tsipras [primeiro-ministro da Grécia com o Syriza, a coalizão de esquerda radical]?
R. Zero. O povo grego nos deu um mandato para dizer não à troika e ele se rendeu na noite do referendo. Foi por isso que pedi demissão, ele se rendeu e o resultado foi a perda total da dignidade e da credibilidade da esquerda, não só na Grécia, mas em toda a Europa. O Podemos também acabou naquela noite. Rajoy [ex-presidente da Espanha] saiu com o papel que Tsipras assinou e disse: isso é o que vocês conseguirão se votarem no Syriza espanhol e foi o fim do Podemos. Naquela noite aconteceu um fracasso da democracia. Então, minha relação é zero.
P. E com o Podemos?
R. Acredito que a participação do Podemos no Governo de Sánchez é um erro. E antes disso foi um erro não ter um programa europeu. Tentei convencê-los antes das eleições para o Parlamento Europeu de 2019 de que a direita tem um programa para a Europa, os fascistas têm um programa para a Europa. Mas o Podemos nunca se interessou.
P. O ex-banqueiro central que a Grécia enfrentou, Draghi, está hoje no comando da Itália. É uma solução?
R. É uma solução para o setor bancário, para a troika, para garantir que a democracia está formalmente acabada na Itália. Quando o processo político não pode produzir um primeiro-ministro e você precisa de um ex-tecnocrata do Goldman Sachs, do Banco Central Europeu, para resolver os problemas que os políticos não podem resolver, você está declarando que a democracia fracassou, é a melhor notícia para o Partido Comunista Chinês, porque também não acreditam na democracia, mas sim nos tecnocratas a serviço do povo, mas sem as preocupações do povo. Draghi contratou a consultoria McKinsey para distribuir os fundos de recuperação na Itália, então você já tem o Tesouro nas mãos do Goldman Sachs, os fundos de recuperação nas mãos da McKinsey e o próximo passo pode ser dar à máfia o Ministério da Justiça porque entendem de lei muito mais do que eu. É um fracasso total da democracia na Itália.
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