López Obrador transforma reforma energética em bandeira eleitoral
Presidente mexicano usa a aprovação do plano, criticado por seu impacto econômico e ambiental, para reafirmar seu discurso: “Não é só a nova realidade econômica, é a nova realidade política”
O México se propõe a uma nova reforma energética, e seu presidente, Andrés Manuel López Obrador, tem à mão uma nova bandeira de luta política, às vésperas da campanha para a eleição legislativa de junho. Após apenas um mês de tramitação parlamentar, o presidente, que assumiu esse polêmico projeto como uma aposta pessoal, comemorou nesta quarta-feira a aprovação da lei no Congresso e antecipou a renegociação dos contratos com uma dezena de companhias.
A lei revoga a anterior, impulsionada por Enrique Peña Nieto, e fortalece uma empresa estatal, a Comissão Federal de Eletricidade (CFE), frente à iniciativa privada. Sua discussão aprofundou o choque entre o Governo do partido Morena e a oposição. Mas, enquanto as críticas à reforma legal tinham a ver com seu preocupante impacto econômico e ambiental, sua defesa foi essencialmente política e ideológica. E, independentemente das considerações sobre a difícil aplicação da reforma, o mandatário conquistou uma vitória com a qual tenta reafirmar seu projeto em um momento decisivo.
AMLO, as iniciais pelas quais o presidente é conhecido, vem há semanas mencionando o plano energético quase diariamente nas suas entrevistas coletivas matutinas. Recorre para isso a argumentos muito simplistas, atacando todos os que criticam a nova norma, sejam eles políticos, empresários ou veículos de comunicação, inclusive este jornal. Seu alvo mais habitual são os investidores estrangeiros, que ele habitualmente vincula à corrupção. Contra todos eles, apela ao orgulho nacional. Prometeu aos cidadãos uma economia nas contas da luz e atribuiu todas as objeções a interesses especulativos. Aproveitou a crise elétrica de meados de fevereiro, que evidenciou a fragilidade estrutural da rede e deixou milhões de mexicanos às escuras no norte do país, para ratificar seu discurso, que gira em torno da ideia de soberania energética. E tudo isso tem lhe servido também para atacar adversários e criticar a imprensa.
A reforma foi aprovada num momento em que o México está às vésperas de entrar numa campanha eleitoral que será decisiva para ditar os rumos da segunda metade do mandato de AMLO. O presidente mantém uma aprovação geral elevada – 65%, segundo uma pesquisa feita na semana passada pela empresa SIMO Consulting para o EL PAÍS. Todas as peças aparentemente se encaixariam em um cálculo político preciso, embora Santiago Rodríguez, cientista político e diretor de estudos da empresa de pesquisas, observe que o presidente parece se apegar mais a “uma espécie de razão histórica que a uma razão pragmática”.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aqui“Algo que ficou claro com a Administração de AMLO é seu compromisso total com os símbolos que deram forma ao seu discurso ao longo dos anos”, diz Rodríguez. “Claro que este é um luxo ao qual ele pode se dar por ter um núcleo de aceitação popular sólido, de 65%, e na falta de algum opositor que possa pôr em risco o seu projeto político. Seu interesse parece focado em escrever desde já os livros história que falarão dele no futuro.”
Para o mandatário, chegou a hora de “cuidar do patrimônio público, do orçamento, que é dinheiro do povo”. “O servidor público só deve se interessar, e muito, pelos negócios públicos, não pelos negócios privados. Entendam isto”, afirmou. O próprio López Obrador ressaltou também que este não é só um plano econômico. “Queremos continuar mantendo contratos [com companhias privadas], mas temos que atualizá-los à nova realidade, que não é só a nova realidade econômica, é a nova realidade política, o que é igualmente claro; não é mais o tempo dos políticos que estavam a serviço das empresas”, enfatizou. O presidente fazia referência a grupos como a espanhola Iberdrola, que já descartou no final de 2020 novos investimentos no México.
Apesar dessa filosofia, ele diz que não ter a intenção de prescindir dos empresários. Respondendo às críticas, acrescentou: “Quero esclarecer que [as empresas] são fundamentais para o desenvolvimento do México. Não seria possível crescer, não seria possível melhorar a economia do país, não haveria progresso sem a participação dos empresários. Mas a corrupção não ajuda. Então, não somos contra os empresários, somos contra a corrupção”. “Por que, se na Espanha há uma margem de lucro de 15%, aqui a margem de lucro delas seria de 150%?”, questionou.
A reforma, que expôs o Governo a críticas de organizações empresariais e câmaras de comércio, entre elas as da Espanha e Estados Unidos, representa uma profunda reviravolta que tolhe o princípio de liberalização do setor energético. Isso é na prática um freio a que as usinas mais eficientes, que costumam ser as centrais renováveis de empresas privadas, sejam também as primeiras a fornecer eletricidade. A ordem agora será invertida, e, quando a nova lei entrar em vigor, a Comissão Federal de Eletricidade terá prioridade em todo o mercado nacional.
A mudança de paradigma representa um sério conflito ambiental que tanto a oposição como especialistas detalharam durante a tramitação parlamentar. O plano reforça uma empresa paraestatal, mas também representa um golpe às energias limpas, como a eólica. Um dos principais problemas da CFE é que muitas de suas centrais termoelétricas estão obsoletas. O critério, portanto, deixa de ser a eficiência em troca de uma concentração do mercado, e a isso se soma que, com a reforma, não serão mais obrigatórios os leilões para a compra e fornecimento de energia elétrica.
As consequências, segundo executivos do setor, são preocupantes para o meio ambiente, o que contraria o discurso de combate à mudança climática mantido pelo mandatário, além de prejudicarem a economia. A lei se transforma em um muro para os investimentos, sobretudo das companhias estrangeiras, que, diante dos obstáculos, podem optar por outros mercados. Segundo cálculos da Secretaria de Economia do Governo mexicano, nos últimos anos os investidores privados deixaram no país 17,675 bilhões de dólares “a título de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica”.
Os analistas consultados não hesitam em ver no plano uma volta ao passado e uma reconstrução de uma espécie de nacionalismo energético. O consultor David Shields considera que o presidente “lida com uma lógica segundo a qual ele vai retornar a um passado dourado, um passado que foi melhor, em que se nacionalizou”. “Então ele diz: ‘O que estou fazendo é mudar a lei da indústria elétrica para que o país esteja melhor, e que a indústria elétrica não seja dirigida por vilões’. E isso recebe aplausos. Ele está numa cruzada contra os corruptos, os malfeitores, gente que fragilizou a CFE, uma grande empresa que foi nacionalizada”, argumenta. “O que é preocupante é que provavelmente teremos uma eletricidade mais cara, o que não afetará o povo de maneira direta, porque essa energia sempre foi subsidiada e continuará sendo. Quem será afetado serão os industriais. Eles verão um aumento dos seus custos. E de forma indireta isso afetará a população.”
Segundo Rodríguez, o nacionalismo energético como símbolo se move precisamente entre essas duas vertentes. Remete por exemplo “a um dos ícones históricos do México no século XX, quase institucional, graças a Lázaro Cárdenas”. Por outro lado, a conjuntura que leva López Obrador a vencer as eleições em 2018 foi “o rechaço a toda ideia associada e ao compromisso plasmado no Pacto pelo México de Peña Nieto”. E foi justamente em torno da abertura do mercado energético que os partidos PRI, PAN e PRD se encontraram nessa plataforma política comum, lançada em 2012.
Com estas premissas, a reforma aprovada no Senado na noite de terça gera mais considerações políticas e de caráter simbólico que uma verdadeira discussão sobre seus benefícios. “Isto tem também uma dimensão temporal. Ao menos pelo tempo que durar seu mandato, ele poderá controlar o preço que a maior parte do seu eleitorado paga pela energia, mesmo que isto afete administrações futuras”, prossegue o cientista político. “Mas seu cálculo político parece girar exclusivamente em torno da sua sólida aprovação de 65%. Ele percebe que perde muito pouco a cada excentricidade.” Nesta sexta começa a campanha eleitoral em alguns Estados. O que AMLO já deixou claro é que está disposto a levar a confrontação política e ideológica a todos os terrenos para fortalecer suas bases.
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