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Três dólares por mês para ser funcionário público na Venezuela

Setor estatal reflete fracasso do modelo de gestão chavista. Baixos salários empurram milhares de profissionais a largarem seus empregos e engrossarem as fileiras da informalidade

Funcionário limpa os assentos de uma sala de cinema em Caracas, na quarta-feira.
Funcionário limpa os assentos de uma sala de cinema em Caracas, na quarta-feira.Pedro Rances Mattey
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“Com Chávez, tudo mudou, mas nada realmente mudou na Venezuela”

A Administração Pública da Venezuela é uma enorme máquina avariada. Corredores desolados, escritórios fechados, trâmites congelados, serviços inoperantes. A queda do poder de compra do bolívar, a moeda nacional, transformou os servidores públicos em uma classe condenada à pobreza, ou em alguns casos à miséria. Os salários pagos neste setor – que congrega cerca de dois milhões de venezuelanos, após anos de emigração e demissões voluntárias – são um reflexo do fracasso do modelo econômico impulsionado a partir de 1999, primeiro por Hugo Chávez e depois por seu sucessor, Nicolás Maduro. A pandemia acelerou a migração de funcionários, não só para fora do país, mas também para o setor privado ou simplesmente para a inatividade, pois muitos acabam gastando todo o salário mensal no transporte para chegar aos locais de trabalho. A população ativa empregada em algum setor formal não chega a 60%.

Um engenheiro civil contratado por alguma das prefeituras que compõem Caracas chega a ganhar pouco mais de três dólares por mês. Nos últimos 10 anos, David González viu seu local de trabalho se esvaziar. “Éramos 13 profissionais e só restam três, e os cargos gerenciais foram assumidos pelos menos qualificados. Só vão trabalhar os que podem chegar a pé, e trabalham meio período”, diz González, de 42 anos. Desde que a pandemia começou, ele não voltou mais ao escritório. Sua renda não lhe permite pagar o deslocamento. Tenta o teletrabalho quando é pressionado pela prefeitura, começou a fazer trabalhos esporádicos para uma empresa. Em sua conta bancária recebe seu salário e às vezes bonificações que não sabe a que correspondem, e que não lhe permitem cobrir nem sequer a alimentação de uma semana. Esses subsídios também são considerados parte das folhas de pagamento e consistem basicamente em cestas de produtos básicos distribuídas pelos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP).

Pouco resta dos anos de sólidos rendimentos petrolíferos e do crescimento exorbitante na folha de pagamentos do funcionalismo público, impulsionado pelas estatizações ordenadas pelo então presidente Chávez. Mas a debacle de agora foi semeada naquela época. Antonio Suárez, presidente da Federação de Funcionários Públicos, recorda que “em 2008 mudaram a escala salarial e agruparam o pessoal administrativo e profissional em apenas três tipos, em vez de remunerá-los em função da sua expertise. Na época protestamos, dissemos que era uma medida contra a carreira administrativa”, afirma. “Por isso a diferença entre um bacharel [de categoria] 1 é que ganha salário mínimo (1,2 milhão de bolívares, menos de um dólar ao câmbio oficial), e um profissional 3, com pós-graduação, ganha três milhões de bolívares [1,6 dólar]”. Outro marco foi a conversão monetária ordenada por Nicolás Maduro em 2018. “Os salários viraram nada, e os contratos coletivos foram totalmente ignorados.”

Assim como os usuários dos serviços públicos estatais há anos não recebem faturas por seu consumo, como um sinal da inoperância dessas empresas, os trabalhadores tampouco têm acesso aos contracheques. “Ninguém nas empresas do Estado sabe quanto ganha, o que é uma violação das leis trabalhistas”, observa Noel Hernández, advogado e representante sindical das empresas da Corporación Venezolana de Guayana, outrora uma potência das indústrias básicas no sul do país, uma referência na região. Esta megaempresa dedicada à extração e processamento de ferro, alumínio, aço, bauxita e outros minerais chegou a dar emprego direto a 56.000 pessoas. Hoje, só 10% desse contingente trabalha ativamente. Em outros termos: se antes usavam uma frota de 220 ônibus para transportar os operários da Siderúrgica do Orinoco – de onde recentemente saíram os caminhões de oxigênio para apoiar a crise pela pandemia em Manaus –, hoje só 12 veículos são utilizados. Tamanha redução na força de trabalho é um exemplo da destruição do aparato produtivo no país, observa Hernández. “Temos doutores em alumínio, engenheiros, técnicos e operários especializados que hoje estão dedicados à buhonería [comércio informal], ou vendendo seus televisores e eletrodomésticos para sobreviver. Diariamente um trabalhador da CVG vai embora do país. Muitos tiram férias e não voltam mais.”

Queda abrupta da ocupação

A consultoria Anova fez recentemente, a partir de dados da última Pesquisa Nacional de Condições de Vida, realizada por três universidades venezuelanas, uma análise do mercado trabalhista que mostra que o país tem a mais baixa taxa de atividade da região. Apenas 59,2% da população economicamente ativa está empregada. Logo atrás da Venezuela nessa lista aparecem o México e a Argentina. O próprio Maduro reconheceu no começo deste mês que o trabalho formal ronda 56%. No caso das mulheres, a informalidade se acentuou com uma queda de 10 pontos em duas décadas: apenas 44,6% do total de mulheres em idade de trabalhar têm carteira assinada, de modo que quase 40% dos venezuelanos estão desempregados, um indicador que o Fundo Monetário Internacional projetava que chegaria a 47,9%, o mais alto do mundo.

O relatório da Anova também aponta que pouco mais de um quarto dos empregados (26,6%) pertence à Administração pública, uma percentagem similar trabalha em empresas privadas (25,9%), e quase a metade (49,7%) são os chamados trabalhadores por conta própria. Mais de metade se dedica ao comércio e serviços, e 85,7% do total de empregos estão em ocupações de pouca qualificação, como analistas e operários.

As conclusões deste estudo revelam uma dimensão da crise econômica venezuelana em que o trabalho perdeu todo o seu valor como meio para a subsistência. O salário médio da economia é de 26,4 dólares mensais (142 reais), o que representa menos de 1 dólar por dia. “As condições trabalhistas oferecidas pelo setor público venezuelano são muito inferiores às dos demais setores; o Estado venezuelano emprega 26,6% dos trabalhadores e paga o salário médio mais baixo do mercado: 13,2 dólares mês”. Grande parte recebe apenas o salário mínimo, diz o relatório divulgado no final de 2020. A mesma consultoria calcula que pelo menos 500.000 servidores públicos pediram demissão de seus cargos no último ano. Este grupo inclui também os professores de todos os níveis e pessoal sanitário que vem protestando, e inclusive muitos paralisaram totalmente suas atividades.

Demissões

Os dados analisados pela consultoria mostram que a população ativa se reduziu abruptamente em milhões de pessoas. A migração forçada de venezuelanos é a primeira resposta a este fenômeno. Mas o indicador se contrapõe a uma medida que o chavismo aplica há 20 anos: a imobilidade trabalhista. Desde 2002, o Governo proibiu a demissão de trabalhadores sem uma inspeção trabalhista prévia. O chavismo fez do funcionalismo público parte da sua máquina política-eleitoral, mas a desmobilização registrada nas eleições parlamentares de dezembro – com uma abstenção superior a 70% - é uma evidência da depreciação dos benefícios e do descontentamento desse setor.

Vendedores trabalham no mercado de rua Coche, em Caracas, debaixo de chuva.
Vendedores trabalham no mercado de rua Coche, em Caracas, debaixo de chuva. MANAURE QUINTERO (Reuters)

No CANTV, empresa estatal de telecomunicações, foram registradas várias demissões recentemente, aponta o dirigente sindical Joan Chávez. Ele diz que apenas 40% do contingente da empresa está efetivamente trabalhando. A inatividade não é só por causa dos salários, mas também pela deterioração da empresa, que ficou sem licenças para operar os sistemas e vê a deterioração de equipamentos de apoio, como baterias para antenas ou aparelhos de ar-condicionado para os funcionários, o que se traduz em constantes avarias insolúveis na telefonia e na Internet. Nas próprias instalações da empresa é possível ver trabalhadores vendendo comida e outros produtos para sobreviver. Deisy Torre deixou de receber seu salário como técnica da empresa no começo da pandemia. Um processo de três anos sob inspeção trabalhista terminou em uma demissão da qual, afirma, não lhe permitiram recorrer. “Fui expulsa com imobilidade, no momento em que a gente mais precisa do trabalho”, diz a mulher, de 46 anos, que agora vende sabão e outros artigos no bairro do Petare.

A pandemia da covid-19 agravou o problema em toda a América Latina, como advertiu neste mês a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Chegamos a 2021 com o emprego na UTI”, declarou semanas atrás o diretor-regional da OIT, Vinicius Pinheiro, ao alertar que o desemprego poderia chegar a 11,2% na região. Jesús Medina, de 51 anos, está desempregado pela primeira vez desde que começou a trabalhar, aos 14 anos, como jardineiro e depois como mensageiro. Por 20 anos esteve numa companhia que administrava seis restaurantes em Caracas. A empresa fechou todas as filiais, e sua função de mensageiro deixou de ser necessária. Vai completar um ano sem trabalho. Como tem moto, procurou vaga no crescente setor das entregas em domicílio. “Fui a uma entrevista, mas não tenho celular adequado para trabalhar com os aplicativos desses serviços”, comenta. “Nunca na vida tinha ficado sem trabalho. É muito duro sair para rua para ver como você se vira para ter um pouco de dinheiro, mas chegar em casa de mãos vazias.”

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