Golpe em Mianmar expõe relação impossível entre Exército e Aung San Suu Kyi

A política conhecida como ‘A Dama’, que esteve em prisão domiciliar por 15 anos, é detida outra vez pelos militares, após um novo golpe de Estado em Mianmar

Um grupo de ativistas de Mianmar segura o retrato de Aung San Suu Kyi, durante um protesto em frente à Universidade das Nações Unidas, em Tóquio, Japão. As prisões dos líderes de madrugada em suas residências em Naypidaw ocorreram poucas horas antes de o Parlamento realizar sua sessão inaugural.PHILIP FONG (AFP)
Cingapura -

A ambição de Aung San Suu Kyi de ver o Mianmar se tornar um país democrático está longe de se realizar, por enquanto. Após um período de impasse, a relação tensa entre a Nobel da Paz, conhecida como A Dama, e as Forças Armadas explodiu quando ela foi detida pelo Exército, que nesta segunda-feira declarou estado de emergência por um ano e desmantelou o Governo civil. A tomada de controle pelos militares demonstra o poder que a corporação ainda detém, depois de uma década de transição democrática, embora se espere que não seja suficiente para minar o apoio civil alcançado por Suu Kyi durante esse período.

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Já se previa que a relação entre as duas partes seria um dos pontos quentes da nova legislatura, mas não houve ocasião para isso. As relações entre o Governo civil, liderado na prática por Suu Kyi, e o Exército — conhecido como Tatmadaw — eram um dos desafios do novo Parlamento, que tomaria posse nesta segunda-feira após as eleições de novembro, nas quais o partido da Nobel, a Liga Nacional para a Democracia (LND) conquistou uma maioria esmagadora.

Uma vitória não reconhecida pelos militares, que se escoraram em acusações de fraude eleitoral não documentada nem comprovada para dar o golpe e prender Suu Kyi, de 75 anos, o presidente Win Myint e outros líderes do Governo civil. Assim, não se realizou a sessão parlamentar em que hoje se esperava a nomeação do novo presidente e vice-presidentes do país para os próximos cinco anos, bem como a aprovação das nomeações de ministros.

“A declaração do estado de emergência e a prisão da conselheira de Estado Aung San Suu Kyi e outros líderes e ativistas pró-democracia demonstram o poder que o Exército tem em Mianmar”, enfatiza Alistair Cook, especialista em Sudeste Asiático do programa de relações internacionais do Instituto Rajaratnam, de Cingapura.

O equilíbrio de poder entre Suu Kyi e os militares tem sido motivo de dores de cabeça desde que a LND ganhou em 2015 as primeiras eleições livres em Mianmar (antiga Birmânia), que deram início a uma transição democrática após meio século da Junta Militar (1962-2011). De acordo com a Constituição de 2008, redigida pelos militares, o Exército ainda controla as pastas ministeriais do Interior, Defesa e Fronteiras, bem como 25% das cadeiras parlamentares. Além disso, de acordo com uma cláusula imposta ad hoc para retirar oficialmente Suu Kyi do poder, o cargo de presidente não pode ser preenchido por alguém com uma família estrangeira, como é o caso da Nobel, que tem dois filhos com o acadêmico britânico Michael Aris.

A missão de Suu Kyi, que passou 15 anos em prisão domiciliar por sua luta pela democracia até ser libertada em 2010, era muito complicada. Por um lado, tinha que buscar pontos de entendimento com as Forças Armadas se quisesse permanecer no poder depois de ser nomeada conselheira de Estado em 2015 —- a líder de facto do país —, por outro, precisava tentar ganhar espaço do Tatmadaw para consolidar as reformas democráticas.

Nesse malabarismo houve um ponto particularmente delicado, especialmente fora de Mianmar: a perseguição e a expulsão da minoria muçulmana rohingya. Milhares fugiram para o vizinho Bangladesh em agosto de 2017, no que a ONU está investigando como possível genocídio do Exército. Suu Kyi chegou a defender as Forças Armadas birmanesas em Haia em dezembro de 2019, desencadeando uma enxurrada de críticas da comunidade internacional, embora a causa rohingya não tenha a simpatia da população de Mianmar, de maioria budista. Por esta razão ou por convicção, a política birmanesa, antes vista como defensora dos direitos das minorias — foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz em 1991 por ser “um exemplo extraordinário do poder de quem não o possui” —, nunca publicamente confrontou o Exército sobre a situação dos rohingya.

Mas a defesa de Suu Kyi dos militares em Haia não a ajudou muito. Sua relação era tensa desde que fora nomeada conselheira de Estado, e os conflitos pioraram após as tentativas de A Dama modificar a Constituição para limitar a influência dos militares no Governo, algo que ela deveria continuar fazendo neste mandato. “No momento, quase não havia comunicação direta entre Suu Kyi e Min Aung Hlaing [comandante-chefe das Forças Armadas]. Os dois se reuniam em particular até 2018, mas depois o diálogo parou”, aponta a publicação japonesa Nikkei, citando fonte próxima ao Governo.

As eleições de novembro foram cruciais. Sem apoio para suas alegações de fraude, representantes do Exército se reuniram com enviados do Governo em Naypidaw em 28 de janeiro para tentar, sem sucesso, chegar a um acordo. Os militares exigiram uma nova recontagem dos votos e o adiamento da posse do novo Parlamento, o que o Governo de Suu Kyi recusou.

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Embora o Exército agora anuncie a realização de eleições “livres e justas”, sem uma data definida, a LND de Suu Kyi supostamente exortou a população a não aceitar o golpe e iniciar protestos, em um comunicado cuja autoria não pôde ser confirmada. “Peço ao povo que não aceite, que responda e proteste com firmeza contra o golpe militar”, diz o texto, firmado em princípio por Suu Kyi.

Embora criticada nos últimos anos pela sua inércia em face das atrocidades cometidas contra os rohingya, não faltaram vozes pedindo a sua libertação, incluindo os Estados Unidos e o secretário-geral da ONU, António Guterres. Suu Kyi, filha do herói da independência do país, o general Aung San, continua a ser considerada a única com capacidade para consolidar a democratização de Mianmar. Um projeto agora abortado, mas que nem todos perdem a esperança de recuperar. “As eleições de novembro de 2020 mostraram o grande apoio popular que Aung San Suu Kyi tem, e uma intervenção militar não vai fazer com que desapareça”, avalia Cook.

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