Fábrica russa de mentiras está ativa e se espalha a novos continentes

Usina de desinformação que interferiu nas eleições norte-americanas de 2016, numa operação preparada por um homem do círculo de Putin, agora age também na África

Centro de dados do Facebook em Lulea (Suécia), numa imagem de 2013.JONATHAN NACKSTRAND (AFP)

Em um edifício de escritórios na cidade russa de São Petersburgo, na nação balcânica de Montenegro ou em centros empresariais de Gana e da Nigéria. A fábrica russa de mentiras, a usina de trolls que semeou uma profusão de boatos falsos na campanha para as eleições presidenciais norte-americanas de 2016, polarizando o debate e interferindo na sua propaganda, nunca foi desativada. A usina original foi copiada, e muitas de suas operações foram terceirizadas. As operações da máquina de propaganda, que deixou à vista as vulnerabilidades do sistema e a magnitude e força das operações de ingerência e desinformação da Rússia, espalharam-se pelos Estados Unidos, por vários países europeus e alguns da África. Enquanto isso, os gigantes da Internet e os governos ocidentais tratam de confrontá-la, em alguns casos com táticas não totalmente limpas.

A técnica é a mesma que Vitaly Bespalov praticou durante algumas semanas em 2015. Esse jovem trabalhava em um edifício de concreto de quatro andares na rua Savushkina, em São Petersburgo, sede da chamada Agência de Pesquisas da Internet (AII) e matriz da usina de trolls. Sua missão era defender posições pró-russas durante um dos picos do conflito na Ucrânia, e mais tarde sobre a política norte-americana. “Tratava-se de alimentar o discurso e semear as redes com comentários falsos e interessados para beneficiar a Rússia”, comenta Bespalov, que hoje trabalha em uma organização de defesa dos direitos LGTBI. Por trás de catracas camufladas e com a proteção de seguranças, blogueiros, ex-jornalistas e outros profissionais recrutados pela agência trabalhavam para lançar esse “carrossel de mentiras”, como descreve a ativista e pesquisadora Liudmila Savchuk, que no final de 2014 trabalhou infiltrada na fábrica de trolls de São Petersburgo e ajudou a desmascarar a estrutura.

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Aquela operação de desinformação na Ucrânia foi considerada bem-sucedida e serviu de germe para uma nova missão, desenhada para intervir nas eleições presidenciais de 2016, e voltada desta vez para o público dos EUA. Uma nova equipe de pessoas, fluentes em inglês e dotada de salários mais suculentos, criou uma rigorosa quota de publicações incendiárias sobre a candidata Hillary Clinton, a justiça racial e Donald Trump, fazendo-se passar por norte-americanos. O entorno polarizado foi um terreno fértil para os trolls russos, que amplificaram a discórdia que já fervilhava.

Era uma máquina de propaganda que também se dedicou a comprar publicidade e publicar anúncios sobre raça, imigração e armas de fogo, que chegaram a 10 milhões de pessoas nos Estados Unidos. O exército digital de trolls, acusado de interferir no pleito de 2016 é, segundo Washington, parte do império empresarial de um dos oligarcas da órbita mais próxima do Kremlin, Yevgeni Prigozhin, empresário do ramo gastronômico e alvo de sanções dos EUA. Apelidado como “o chef de Putin”, ele provou que o sistema era eficaz em 2011, quando contratou dezenas de pessoas para que elogiassem na mídia e nos principais fóruns da Internet russa a comida do sua empresa de catering, cuja qualidade havia sido questionada em várias denúncias.

Prigozhin, apontado como suspeito nas investigações sobre a ingerência eleitoral do promotor especial Robert Mueller, negou qualquer vinculação com a agência e com as atividades de sua máquina de propaganda. Também o Kremlin rechaçou as acusações.

Apesar dos alertas e dos mecanismos de vigilância adotados pelos gigantes da Internet e pelas redes sociais após o escândalo de 2016, as usinas russas de trolls continuaram operando, embora tenham mudado um pouco as suas técnicas de publicação, para reduzir os riscos de serem detectadas. Mesmo assim, sua influência e sua sombra são longas. Suas ambições e seus tentáculos, também. Nos últimos meses, o Twitter anunciou a eliminação de milhares de contas vinculadas à AII. Em março, o Facebook revelou que tinha descoberto uma subsidiária da usina russa de trolls em Gana e na Nigéria, operada por pessoas locais, mas vinculada à AII de São Petersburgo, e que tinha como alvo os Estados Unidos. E em setembro a empresa eliminou outra leva de contas, que ainda estavam em etapa de desenvolvimento e centravam suas atividades nos Estados Unidos, Reino Unido, Argélia e Egito. Esses usuários faziam publicações em inglês e árabe sobre temas como o movimento Black Lives Matter, a OTAN, Donald Trump, a campanha presidencial de Joe Biden e a conspiração do grupo radical QAnon.

Nos últimos meses, essa intensa atividade chegou a resultar em guerra de trolls na África. Há duas semanas, o Facebook anunciou que tinha identificado outra usina de desinformação russa vinculada à AII e direcionada a países africanos, e também uma estrutura francesa. São campanhas rivais voltadas, sobretudo, para as eleições deste fim de semana na República Centro-Africana ―onde Moscou tem cada vez mais interesses― e a outros 13 países da África que procuravam enganar os usuários da Internet e se desmascararem entre si.

É a primeira vez que a rede social identificou e bloqueou um grupo de trolls, vinculado a “pessoas associadas ao exército francês”, que atuam pelos interesses de um Governo ocidental. “Não se pode combater fogo com fogo”, advertiu Nathaniel Gleicher, chefe de política de segurança cibernética do Facebook. E acrescentou: “Temos estes dois esforços de diferentes lados destes problemas utilizando as mesmas táticas e técnicas, e terminam parecendo a mesma coisa”.

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