Venezuela vive falsa normalidade às vésperas das questionadas eleições legislativas de domingo
Governo de Maduro encerra uma campanha marcada pelo desinteresse, enquanto a oposição e várias instâncias internacionais se preparam para rejeitar o resultado
A Venezuela realiza no domingo eleições legislativas que contêm várias anomalias inclusive antes de o pleito acontecer. A grande maioria das forças oposicionistas não participará da votação, por considerar que lhe faltam garantias suficientes. Ao mesmo tempo, as principais instâncias da comunidade internacional, com os Estados Unidos e a União Europeia à frente, se preparam para rejeitar o resultado. O chavismo, enquanto isso, busca dar uma imagem de normalidade a uma campanha marcada por uma forte desmobilização de suas bases e se prepara para recuperar o controle da Assembleia Nacional, presidida por Juan Guaidó e dominada pela oposição a Nicolás Maduro.
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Nesta segunda-feira, em um comício do governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), Diosdado Cabello, número dois do aparato chavista, afirmou que “quem não vota não come”. “Aplica-se uma quarentena e não come”, insistiu. Cabelo lançou a advertência, condicionando a entrega de cestas básicas e outras ajudas sociais aos setores mais carentes do país —foco do trabalho do Governo desde os tempos do falecido presidente Hugo Chávez—, tratando de apelar ao voto. “As mulheres estarão à frente desta batalha. Sei que é a mulher que vai se levantar cedinho e vai dizer em casa, ‘vamos levantar que temos que votar’”, prosseguiu.
A campanha para as eleições legislativas deste domingo teve uma última semana de comícios, debate e anúncios apresentados diante da indiferença de grande parte da população. Em um contexto muito desigual no manejo dos recursos e acesso aos meios de comunicação, os candidatos do governista PSUV enfrentam dirigentes da Mesa de Diálogo Nacional, uma facção minoritária da oposição que decidiu concorrer, apesar dos múltiplos questionamentos sobre a falta de garantias jurídicas. Estas dúvidas fizeram, por exemplo, que a União Europeia se recusasse a enviar uma missão de observação.
A organização das eleições parlamentares venezuelanas, que estavam previstas para este ano, foi acumulando tamanha sequência de denúncias que lhe retirou o entusiasmo inclusive dos setores mais moderados da dissidência. O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), controlado pelo chavismo, decidiu assumir as funções do Parlamento atual, de maioria opositora, nomeando por conta própria os novos reitores do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Como afirma o advogado Andrés Caleca, ex-presidente do Conselho Nacional Eleitoral, o Executivo “dedicou-se a partir daquele momento a violar todas as disposições constitucionais, deixando sem validade os conteúdos da Lei de Processos eleitorais”.
Na sequência, observa Caleca, os cinco integrantes do CNE começaram a desenhar uma consulta com inconsistências e violações à Constituição: “O número de assentos da Assembleia Nacional foi ampliado de 167 para 277 deputados e rompeu-se o princípio da representação populacional. Agora 40 deputados serão eleitos a partir de uma lista nacional desvinculada dos circuitos eleitorais, o que significa tecnicamente uma eleição de segundo grau. A mudança de regulamento eleitoral foi feita sem respeitar os seis meses de antecedência previstos em lei”.
Os três deputados indígenas previstos na Constituição não terão direito ao voto direto e secreto, pois os candidatos se apresentarão em espaços fiscalizados pela Guarda Nacional, em assembleias nas quais se vota levantando a mão. Luis Lander, diretor do Observatório Eleitoral Venezuelano, recorda que “o inventário de violações à lei inclui a ausência de licitação para as novas máquinas a serem usadas na eleição, logo depois de todo o parque tecnológico do CNE ser queimado em um incêndio em março passado”.
Lander também menciona a “judicialização dos principais partidos políticos de oposição [Ação Democrática, Vontade Popular, Primeiro Justiça] e de algumas organizações aliadas do chavismo, como o Movimento Tupamaro, cujas diretorias sofreram intervenções e foram ocupadas por pessoas que não foram escolhidas pela militância, o que compromete a liberdade dos candidatos”.
No começo de setembro, depois de um indulto maciço concedido a cerca de 100 membros da oposição, abriu-se a porta a uma negociação entre o Governo e um setor mais amplo da oposição, encabeçado pelo ex-candidato presidencial Henrique Capriles. Essa possibilidade, entretanto, foi frustrada semanas mais tarde, quando uma missão eleitoral da União Europeia determinou que não havia condições para uma competição democrática e pediu um adiamento da votação. O Executivo recusou, argumentando que, segundo a Constituição, o novo Parlamento deve tomar posse em janeiro de 2021. Nesse cenário, o PSUV inevitavelmente voltará a assumir o controle da única instituição dominada desde 2015 pelas forças críticas ao chavismo.
“As eleições foram concebidas para dar uma maioria antecipada o chavismo”, afirma Eglée González Lobato, advogada especializada em participação política e professora da Universidade Central da Venezuela. “A modificação do sistema de eleição legislativa é escandalosamente inconstitucional, altera-se o mecanismo aritmético que permite traduzir os votos em assentos. Não é um processo que permitirá aos cidadãos a resolução de suas diferenças com métodos democráticos. A maioria antecipada que o chavismo forjará acaba com qualquer princípio democrático.”
Com relação ao cadastro eleitoral, González Lobato acrescenta que “não houve oportunidade de incorporar novos eleitores, houve uma sobrerrepresentação da eleição de deputados nos circuitos onde o chavismo tem força e houve migrações de eleitores”. O cadastro está afetado, de fato, por um fluxo migratório maciço tanto das zonas rurais para as cidades como, principalmente, por um êxodo que, segundo o cálculo de Nações Unidas, supera os cinco milhões de pessoas que deixaram o país nos últimos anos.
As novas regras do jogo, dizem Caleca e González Lobato, foram adotadas com o apoio e participação dos partidos opositores da Mesa de Diálogo Nacional, pequenas formações quase sem estrutura e que, de qualquer maneira, verão suas bancadas partidárias crescerem em 2021.
A esses questionamentos é preciso acrescentar alguns elementos inerentes ao próprio dia da eleição, que ocorrerá depois de Maduro suspender as restrições adotadas em março pela pandemia de coronavírus, numa tentativa de estimular o consumo natalino. Enquanto as Forças Armadas participam da logística eleitoral, o PSUV voltou a instalar os chamados “pontos vermelhos”, quiosques onde os eleitores devem se registrar com sua carteira da pátria (RG) depois de declarar se deseja receber ajudas sociais.
Estes aspectos foram criticados pelos relatórios das Nações Unidas em torno da crise venezuelana e denunciados em repetidas ocasiões, sem consequências, por políticos da oposição. Nada nos altos mandos chavistas parece se alterar diante destas denúncias. “Não nos importa se os Estados Unidos ou a União Europeia não reconhecem nossas eleições”, afirmou a vice-presidenta Delcy Rodríguez. “Eles não são os donos do mundo, e o assunto nos é completamente indiferente.”
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