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Seis homens, um porão e um plano para iniciar uma guerra civil nos EUA

Adam Fox e seus amigos conspiravam para sequestrar a governadora de Michigan, uma estrela do Partido Democrata, antes das eleições. Queriam, segundo o FBI, provocar uma guerra. A ameaça das milícias privadas cresce em um clima de elevada tensão política

Porão da loja de aspiradores Vac Shack, em Grand Rapids (Michigan), onde vivia Adam Fox.
Porão da loja de aspiradores Vac Shack, em Grand Rapids (Michigan), onde vivia Adam Fox.Mónica González
Amanda Mars

Nos Estados Unidos ― um país jovem, rico e brutal, que faz acreditar que com esforço tudo é possível ― há quem invente a Microsoft numa garagem, mas também quem conspire para provocar uma guerra civil. Adam Fox estava no segundo grupo. Um porão com aspecto de covil, um habitáculo escuro e cheio de tralhas numa loja de aspiradores de pó em uma pequena cidade de Michigan. Lá, durante meses, este homem de 37 anos tramou com outros cinco indivíduos um plano para atacar o Capitólio estadual, sequestrar a governadora e instigar uma insurreição armada. Isso teria que ocorrer antes das eleições presidenciais de 3 de novembro.

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Mike McCarter, nativo de Oregon de 72 años, residente de La Pine, admira la reputación políticamente conservadora de Idaho. McCarter es el principal peticionario de Move Oregon’s Border, una organización sin fines de lucro que quiere transferir los condados del sur y este de Oregón a Idaho. La organización cree que los condados rurales de Oregon tendrían mejor representación en la Legislatura liderada por los republicanos de Idaho que en la Legislatura liderada por los demócratas en Salem. Move Oregon's Border simplemente quiere ajustar las fronteras estatales existentes y que sea el río la frontera natural. Como instructor de armas de fuego, McCarter es miembro de la Asociación Nacional del Rifle y copresidente del comité de La Pine Friends of NRA.
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“Estou chocado, magoado, porque o conheço desde menino”, dizia o proprietário do estabelecimento, Brian Titus, logo depois da detenção de Fox e seus cúmplices.

É sábado, 10 de outubro, e a loja Vac Shack, num subúrbio de Grand Rapids, recebe um fluxo constante de clientes. Também, comenta Titus, chegaram alguns presentes. “É gente do bairro, que me conhece e envia manifestações de apoio.” Dois dias atrás, seu comércio ficou famoso em todo o país. O FBI acabava de deter 13 homens acusados de delitos de terrorismo e posse de armas, seis deles suspeitos de tramarem para sequestrar a governadora democrata Gretchen Whitmer. O cabeça era Fox, funcionário de Titus, a quem ele permitira que ficasse morando naquele porão como solução temporária, quando terminou com a namorada. “Eu o conhecia desde criança”, insiste.

As eleições dos Estados Unidos viraram um barril de pólvora. A crispação política, a onda de protestos contra o racismo e a ousadia de grupos radicais coincidem num momento crítico com uma grave recessão econômica, uma pandemia que deixou mais de 220.000 mortos e um presidente que, sem provas, semeou dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral e fala de uma possível fraude. O International Crisis Group, uma organização de Washington dedicada a alertar sobre possíveis conflitos em todo o mundo, decidiu voltar seus holofotes para os Estados Unidos pela primeira vez em seus 25 anos de história. No mês passado, o Departamento de Segurança Doméstica alertou que o supremacismo branco violento é “o risco mais persistente e letal” que os norte-americanos enfrentam em seu país.

Brian Titus, proprietário da loja Vac Shack em Grand Rapids, Michigan.
Brian Titus, proprietário da loja Vac Shack em Grand Rapids, Michigan.Mónica González (EL PAÍS)

Os agentes federais registraram cada canto da loja de aspiradores de Brian Titus. O grupo, no qual agentes haviam se infiltrado, passou meses planejando a operação, treinando com armas e estudando a elaboração de explosivos. Vigiaram a casa de veraneio de Whitmer em agosto e setembro. Pelo menos em uma ocasião, usaram o porão para discutir a operação, que consistia em levar a governadora a “um lugar seguro” em Wisconsin e submetê-la a um “julgamento”. Um informante ou policial disfarçado gravou a conversa em que Fox dizia: “Ir lá e pegar ela, cara. Pegar essa porra dessa governadora. Simplesmente pegar essa piranha. Porque a essa altura a gente vai lá e faz, e acabou”.

Whitmer é uma estrela ascendente do Partido Democrata, a escolhida, por exemplo, para dar a réplica ao presidente no discurso do Estado da União em fevereiro passado. Chegou a ser cogitada como companheira de chapa de Joe Biden, e Trump se referiu certa vez a ela, com desprezo, como “aquela mulher de Michigan”. A expressão virou um lema para camisetas que a própria governadora usou na televisão.

Os Boogaloo Boys, outra das milícias norte0americanas, em uma mobilização para se distanciar do grupo Wolverine Watchmen.
Os Boogaloo Boys, outra das milícias norte0americanas, em uma mobilização para se distanciar do grupo Wolverine Watchmen.Seth Herald (AFP)

Suas medidas de confinamento para frear o coronavírus desataram a ira dos grupos de ultradireita, que no fim de abril se apresentaram armados no Capitólio de Lansing, a capital do Estado, protagonizando cenas que correram o mundo. Trump tinha acrescentado sua dose de tensão ao escrever no Twitter: “Lidere, Michigan!”. Alguns participantes desses protestos eram membros de uma milícia chamada Wolverine Watchmen. Num dado momento, Fox e seus colegas de complô perceberam que precisariam de apoio técnico para o plano e entraram em contato com sete membros desta organização ― que também foram detidos.

“Sempre houve muitas milícias, não sei ao certo se o número aumentou nos últimos anos, mas elas chamam mais a atenção que antes. Há muita insatisfação, e as coisas se tornaram voláteis”, comenta Mark Arena, que trabalhou durante anos na unidade antiterrorista do FBI em Michigan e agora leciona na Escola de Direito da Universidade Estadual.

“Houve um momento em que comecei a ficar nervoso; não tinha clareza sobre o que acontecia, mas não estava gostando”, comenta o dono da loja. “Ele começou a comprar muitas armas, chegavam aqui, e lhe disse que preferia que se mudasse. Ter armas é legal, pertencer a uma milícia também; o que eles queriam fazer, isso já não é legal.”

A legalidade das milícias é um assunto pantanoso. Os 50 Estados da União proíbem “milícias privadas e não autorizadas, assim como unidades militares que realizem atividades reservadas às forças de segurança”, segundo dados do Instituto para a Defesa e Proteção da Constituição, da Universidade Georgetown, em Washington. Entretanto, formar um grupo e chamar a si mesmo de milícia, isso é legal, assim como possuir armas, como bem diz o comerciante, ou realizar reuniões, dentro da liberdade de assembleia e, obviamente, criticar o Governo.

Essa combinação de fatos e circunstâncias possibilitam que centenas de grupos zanzem pelos Estados Unidos brincando de guerra, vestindo fardas e portando fuzis. Às vezes, convocam manifestações em que intimidam quem não está de acordo, como aconteceu há poucos meses no Capitólio de Michigan; em outras, dedicam-se a apoiar os distúrbios, como em agosto passado em Kenosha (Wisconsin). Muitos deles abraçam ideologias de extrema direita.

E Michigan carrega um legado pesado. Em 19 de abril de 1995, um caminhão carregado de explosivos explodiu em frente a um edifício governamental de Oklahoma City e matou 168 pessoas. Os dois condenados pela matança, Timothy McVeigh e Terry Nichols, eram de extrema direita e tinham vínculos com a Michigan Militia, fundada um ano antes e ativa ainda hoje. Um dos grupos mais conhecido adotou o apelido de boogaloos, por um filme dos anos oitenta, e costumam trajar camisas havaianas combinadas com roupa de camuflagem.

Segundo a ONG de direitos civis Liga Antidifamação, a atividade das milícias cresceu a partir de 2008, com a vitória do democrata Barack Obama, primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. Com a chegada de Trump ao poder, muitos deles se sentiram encorajados. Viram um dos grandes agitadores da direita alternativa, Steve Bannon, se tornar assessor da Casa Branca. Em 19 de novembro de 2016, 11 dias depois das eleições, um conhecido ativista ultraconservador, Richard Spencer, proferiu uma conferência no edifício Ronald Reagan, em Washington e acabou com um brinde ao grito de “Viva Trump; viva, nosso povo, viva a vitória!”. A palavra para “viva” em inglês é hail, que soa igual ao alemão heil. Vários participantes responderam com o braço erguido.

Trump não fundou esses grupos, mas não fez muito para aplacá-los. No primeiro debate presidencial, em 15 de setembro, negou-se a condenar um grupo de ultradireita chamado Proud Boys (“garotos orgulhosos”). No dia das detenções pela tentativa de sequestro de Whitmer, ele escreveu em sua conta que a governadora tinha “feito um mau trabalho”. Além disso, queixou-se dessa política dizendo que “em vez de agradecer [pela intervenção do FBI], me chama de supremacista branco”. Horas antes, Whitmer havia recriminado Trump por ser evasivo nas suas críticas a grupos supremacistas, durante o debate com Biden.

Dias depois, na primeira audiência judicial do caso, um dos agentes envolvidos na prisão declarou que os acusados também planejavam sequestrar o governador democrata da Virgínia, Ralph Northam. Adam Fox já tinha avisado: “Quero que o mundo pegue fogo”.

Vista da cidade de Lansing, Michigan.
Vista da cidade de Lansing, Michigan.Monica Gonzalez (El País)

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