ONU acusa Governo de Maduro de crimes contra a humanidade
Missão das Nações Unidas conclui que as forças de segurança venezuelanas cometeram “violações sistemáticas dos direitos humanos”
Um ano depois de ter sido estabelecida, a missão internacional independente das Nações Unidas para a Venezuela apresentou um relatório devastador em Bruxelas nesta quarta-feira, que, primeira vez, estabelece responsabilidades individuais por graves violações de direitos humanos cometidas pelo Governo venezuelano. O relatório de 443 páginas classifica as violações de crimes contra a humanidade e aponta como responsáveis diretos o presidente Nicolás Maduro; Diosdado Cabello, número dois do chavismo e presidente da Assembleia Nacional Constituinte; os ministros do Interior, Néstor Reverol, e da Defesa, Vladimir Padrino López; e os chefes dos serviços de inteligência, juntamente a outros 45 funcionários do regime venezuelano.
“A missão de investigação encontrou motivos razoáveis para acreditar que as autoridades e as forças de segurança venezuelanas planejaram e levaram a cabo violações de direitos humanos desde 2014”, entre elas assassinatos e o uso sistemático de tortura, “que equivalem a crimes contra humanidade”, afirmou a presidenta da missão, Marta Valinas. “Longe de serem atos isolados, esses crimes foram coordenados e cometidos de acordo com as políticas estatais, com o conhecimento ou o apoio direto de comandantes e altos funcionários do Governo”, acrescentou.
Os investigadores analisaram 223 casos ocorridos desde 2014. Eles também examinaram 2.891 outros casos para corroborar padrões de estupro e crime. O relatório é uma contribuição importante para o extenso arquivo que o Governo Maduro acumulou na justiça internacional. Além disso, a missão independente qualifica que o inventário das violações indicadas cai na jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI). A promotoria do TPI iniciou em fevereiro de 2018 o exame preliminar de uma possível ação por crimes contra a humanidade contra a Venezuela, que, se apurada, seria a primeira contra um país latino-americano.
“Este relatório se soma ao que as organizações da sociedade civil vêm denunciando há anos e é fundamental para dar uma resposta às vítimas, porque as instituições venezuelanas não as estão defendendo, mas sim obstruíndo a justiça”, diz Beatriz Borges, do Centro pela Justiça e Paz, de Caracas. “Este é o resultado do trabalho das ONGs e dos meios de comunicação na pressão pela verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição”, acrescentou Feliciano Reyna, outro defensor dos direitos humanos.
A Anistia Internacional considerou o apoio da ONU a milhares de vítimas um marco. “As autoridades sob o comando de Nicolás Maduro continuam cometendo crimes de direito internacional e graves violações dos direitos humanos, como execuções extrajudiciais, tortura, detenções arbitrárias e uso excessivo da força”, disse em comunicado Erika Guevara Rosas, diretora para as Américas da organização, que apelou à renovação do mandato deste mecanismo internacional de escrutínio. “Não fazer isso seria dar as costas às vítimas, à verdade e à justiça”.
“Hoje eu quero um morto”
As execuções extrajudiciais pela polícia respondem pela maior parte do relatório. A Venezuela tem um dos maiores índices de mortalidade policial na América Latina. O texto inclui 16 casos de operações policiais, militares ou conjuntas que deram origem a 53 execuções extrajudiciais. Também examinou 2.552 incidentes adicionais envolvendo 5.094 mortes nas mãos das forças de segurança.
Entre 2015 e 2017, as Operações de Libertação Popular (OLP), supostamente criadas para combater o crime, resultaram em prisões arbitrárias e execuções extrajudiciais. A ONU examinou 140 dessas operações, nas quais 413 pessoas foram mortas, às vezes baleadas à queima-roupa. Um dos casos investigados é um massacre ocorrido em 2016 em Barlovento, no estado de Miranda (centro do país), no qual 12 homens foram retirados de suas casas pelos militares e semanas depois foram encontrados mortos em uma vala comum.
O relatório destaca que altos funcionários do Governo elogiaram essas ações, nas quais centenas de policiais armados invadiram comunidades, em alguns casos usando veículos blindados e helicópteros. Revela também que funcionários das Forças de Ação Especial (FAES, da Polícia Nacional Bolivariana) disseram aos integrantes da missão que era prática comum assassinar pessoas com antecedentes criminais, plantar armas para simular “confrontos” e atirar com a mão do morto em antecipação a uma perícia.
Uma fonte com conhecimento interno confirmou que os superiores podem dar aos oficiais uma “luz verde para matar”. "Os dirigentes regionais da FAES solicitavam estatísticas de óbitos como procedimento semanal ou mensal. Os chefes de brigada eram responsáveis por coletar essas estatísticas. Eles diziam ‘hoje quero um morto, cada brigada tem que ter um morto’, diz o documento da ONU.
"Essas execuções extrajudiciais não podem ser atribuídas à falta de disciplina das forças de segurança. Oficiais de alta patente tinham comando e controle efetivos sobre os perpetradores e conhecimento de suas ações, mas eram incapazes de prevenir ou suprimir as violações. Os assassinatos parecem fazer parte de uma política de eliminação de membros indesejados da sociedade sob o disfarce da luta contra o crime ", acrescentou Valiñas.
Tortura política
O relatório também inclui como prática sistemática a perseguição por filiação política, o que levou a detenções arbitrárias, com desaparecimentos forçados por curtos períodos de tempo e atos de tortura que, segundo a investigação da ONU, "foram geralmente cometidos durante interrogatórios para extrair confissões ou informações, incluindo senhas de telefone e redes sociais, ou para obrigar uma pessoa a incriminar a si mesma ou outras pessoas, especialmente líderes de oposição de alto perfil.
Situações de estresse, sufocamento, espancamentos, choques elétricos, cortes e mutilações, ameaças de morte e tortura psicológica fizeram parte das estratégias utilizadas para subjugar os detidos. Um caso emblemático foi o do ex-capitão da Marinha Rafael Acosta Arévalo, que morreu torturado sob custódia da Direção Geral de Contraespionagem Militar. Relatório recente da Anistia Internacional, que teve acesso ao processo, revelou que o ex-capitão faleceu no tribunal perante o juiz e não no hospital, conforme indicado pelo Governo. O relatório também revela a montagem de processos para incriminar oponentes. “Em vários casos, as autoridades do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional obrigaram os presos a gravar áudio ou vídeo do WhatsApp várias vezes até que o agente ficasse satisfeito com a declaração”, afirma o documento.
"As agências de inteligência também sujeitaram os dissidentes ― homens e mulheres ― à violência sexual, incluindo estupro com partes do corpo ou objetos e ameaças de estupro contra a pessoa detida ou seus entes queridos, nudez forçada, bem como espancamentos e choques elétricos nos órgãos genitais. Esses atos de violência sexual também constituem tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante ", acrescentou Francisco Cox, membro da missão da ONU.
O documento emite 65 recomendações à Venezuela e à comunidade internacional. Exorta os Estados a iniciarem ações judiciais contra as pessoas citadas no relatório e pede ao Conselho de Direitos da ONU que continue as investigações sobre as violações dos direitos humanos no país sul-americano. As recomendações serão discutidas no dia 23 de setembro pelo Conselho de Direitos Humanos.
A missão da ONU não pôde visitar a Venezuela porque o Governo não respondeu aos pedidos de admissão. Além disso, o grupo enfrentou restrições de viagens devido à pandemia. O documento é então baseado em 274 entrevistas remotas com vítimas, testemunhas, parentes, ex-funcionários do Estado, advogados, representantes de organizações não governamentais e pessoal internacional, relatórios confidenciais e arquivos aos quais a missão teve acesso.