Choques entre simpatizantes do Governo e aliados de Evo Morales agravam o conflito na Bolívia

Os comitês cívicos de Santa Cruz, a ala que mais se opõe ao ex-presidente, ameaçam "convocar o povo para rejeitar a violência" de seu partido

Vista aérea dos protestos em El Alto, na periferia de La Paz, na Bolívia, neste domingo.DAVID MERCADO (Reuters)

O fracasso do diálogo entre o Tribunal Supremo Eleitoral e os sindicatos de mineiros e de camponeses que se opõem ao adiamento das eleições de 6 de setembro para 18 de outubro deixaram a Bolívia à beira de um novo conflito social. Grupos formados por jovens de classes médias que se identificam como “não indígenas” se chocaram no fim de semana com grupos de camponeses e moradores de setores populares que iniciaram sua mobilização com a bandeira das “eleições já” e passaram a pedir a renúncia da presidenta interina, Jeanine Áñez.

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Esses confrontos são semelhantes aos que, no final do ano passado, antecederam a saída do presidente Evo Morales do cargo, só que agora seus protagonistas atuam ao contrário: enquanto camponeses e moradores de bairros populares protestam, os grupos da classe média saem--junto com a polícia ou por sua conta-- para enfrentá-los. Brigas com paus e explosivos não letais entre esses dois grupos ocorreram neste final de semana em La Paz, Cochabamba e na cidade de Samaipata, no departamento de Santa Cruz. Houve vários feridos, sem gravidade. Em San Ignacio de Velasco, na mesma área, um grupo de camponeses reteve por algumas horas três jovens que chegaram a esta localidade com um grupo de ativistas dos comitês cívicos de Santa Cruz de la Sierra.

Luis Fernando Camacho, candidato à presidência e líder das manifestações de 2019 contra Morales, enviou uma carta aberta à presidenta Áñez na qual a exorta a controlar os sindicatos ligados ao Movimento pelo Socialismo (MAS), o partido de Morales. “Se a senhora se ajoelha e se mostra submissa ao MAS e não cumpre sua missão constitucional de dar segurança aos bolivianos, e não ordena o levantamento dos bloqueios (...), anuncio que serei obrigado a convocar o povo para rejeitar a violência masista e cuidar da democracia e da vida dos bolivianos “, advertiu.

Há poucos dias, o Governo ameaçou usar “tudo o que tem” para desobstruir as estradas bloqueadas, mas até agora apenas ordenou que aviões militares sobrevoem as concentrações de camponeses. De modo surpreendente, Áñez convocou um diálogo entre instituições, setores sociais e partidos políticos no domingo, que não contou com a presença dos atores mais relevantes. Nesta reunião ficou acertado ratificar o dia 18 de outubro como a data “definitiva e inadiável” das eleições.

O ministro da Presidência, Yerko Núñez, definiu esta segunda-feira como o último prazo para um desbloqueio voluntário. E avisou que, se alguma pessoa perder a vida nas "operações" do Governo, será "por inteira responsabilidade de quem está nessa mobilização e do partido político que está por trás disso".

Embora os outros partidos culpem Evo Morales e o MAS pelos bloqueios de estradas, na realidade, o ex-presidente e seu partido estão lidando com líderes sociais mais radicais, que não se importam com os efeitos eleitorais dos protestos e não querem recuar enquanto não conseguirem a renúncia de Áñez à presidência interina. Morales recomendou não levar adiante essa demanda. “Os dirigentes e as bases sociais mobilizadas devem escolher responsavelmente entre a renúncia de Áñez, que atrasará ainda mais nosso retorno à democracia, e promover eleições com a garantia das Nações Unidas”, tuitou no domingo. Morales pede que os bloqueios sejam suspensos com o compromisso das autoridades eleitorais, perante os organismos internacionais, de que a data não seja novamente adiada com o argumento da crise sanitária. Mas sua palavra até agora não tem sido suficiente para acalmar as bases de seu movimento, que estão furiosas com o que aconteceu nos últimos meses, entre outras coisas, pelas ações dos grupos de choque antimasistas, tolerados pela polícia.

O MAS acredita que tanto Áñez quanto Camacho querem adiar por tempo indeterminado as eleições porque o favorito para vencê-las é o candidato de esquerda, Luis Arce, que pode passar para o segundo turno com o ex-presidente Carlos Mesa. Um novo adiamento da Justiça Eleitoral da data previamente acertada levou esse partido a iniciar uma onda de protestos, apesar dos riscos de criar focos de contágio do coronavírus. Essa iniciativa foi amplamente repudiada pelas classes médias. As redes sociais se encheram de ataques contra o MAS, acusado de “crimes contra a humanidade” pelo bloqueio nas estradas de caminhões que transportavam oxigênio medicinal. Essa substância é produzida principalmente em Santa Cruz, então, é necessário ser levada de lá para outras cidades do país. As autoridades governamentais enfatizaram este aspecto do conflito e alertam que só há provisão de oxigênio para dois dias nos hospitais de La Paz.

O MAS afirma que a escassez de oxigênio medicinal existe há muito tempo e se deve à ineficácia do Governo, e não aos bloqueios. No entanto, nas redes sociais e na mídia há forte pressão para uma punição drástica contra este partido por “causar muitas mortes” com suas medidas. O Ministério da Justiça pediu a abertura de um processo contra os dirigentes sindicais, bem como Evo Morales, Luis Arce e seu companheiro de chapa, como candidato à vice-presidência, David Choquehuanca, embora apenas o primeiro tenha vínculo legal com os sindicatos que promovem os bloqueios. As denúncias são por “genocídio, terrorismo, sedição, crimes contra a saúde e os serviços básicos, a destruição de bens públicos e crimes contra o meio ambiente”.

Depois da queda de Morales, em novembro, houve um vazio de poder por causa de sua decisão de fazer as principais autoridades parlamentares do MAS renunciarem. Nesse contexto, os parlamentares da oposição da época formaram o Gabinete de Jeanine Áñez, que deveria permanecer no poder por apenas seis meses para convocar eleições. Mas a presidenta se tornou candidata e, depois, com o início da pandemia, a dificuldade de realizar as eleições criou estímulos para que os diferentes atores políticos fizessem cálculos individuais sobre quando seria conveniente para eles a realização das eleições.

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