A história da confederação que encolheu até sumir do uniforme da seleção brasileira de futsal
Criada por João Havelange em 1979, CBFS se afundou em denúncias de corrupção, greves e dívidas nos últimos anos, numa crise que culminou na eliminação inédita para a Argentina na Copa do Mundo
A seleção brasileira de futsal conseguiu um honroso terceiro lugar no Mundial deste ano, disputado na Lituânia. Acostumada a disputar finais, a equipe se recuperou —ainda que não completamente— da derrota para o Irã nas oitavas de final da Copa do Mundo da Colômbia, cinco anos atrás, quando teve seu pior desempenho na história da modalidade. Na edição deste ano, os brasileiros perderam sua primeira partida para a Argentina em uma Copa do Mundo, o que os tirou da final. Os fracassos recentes materializam o ocaso da Confederação Brasileira de Futebol de Salão (CBFS), que já começou errada, no fim da década de setenta, e viu seu processo de decadência de acelerar nos últimos 10 anos.
A CBFS encolheu tanto em seus 40 anos de existência que não é mais possível enxergar seu emblema no uniforme da seleção de futsal do Brasil. No Mundial deste ano, os jogadores brasileiros vestiram pela primeira vez uniformes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), uma demanda feita há anos pela FIFA, que enfim encontrou a confederação de futsal fragilizada o bastante para aceitar. A maior entidade mundial do futebol tem interesse em unificar os dados sobre os jogadores de futebol e futsal, para mapear melhor o histórico dos atletas e premiar seus clubes formadores —vários jogadores de futebol, como Neymar, por exemplo, começaram suas caminhadas no futsal.
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Para entender as origens e os motivos da crise atual é preciso voltar para 1979, reta final da ditadura brasileira. A CBFS é uma entidade que não tem semelhantes ao redor do mundo e foi criada numa canetada pelo histórico cartola João Havelange nos últimos anos do regime militar. Ao transformar a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) em CBF, Havelange, então presidente da confederação, criou a CBFS e a entregou para Aécio de Borba Vasconcelos, político do partido militar ARENA, ex-vice-prefeito de Fortaleza e deputado estadual do Ceará. Bem à moda de uma ditadura, Borba Vasconcelos permaneceu no poder por 35 anos.
Não se pode dizer exatamente que a canetada de Havelange foi um fracasso, pelo menos no que diz respeito à seleção brasileira. Celeiro de craques, o Brasil foi heptacampeão mundial de futsal (1982, 1985, 1989, 1992, 1996, 2008 e 2012). Fortalecida, a CBFS fundou em 1996 a Liga Nacional de Futsal (LNF), a competição mais importante da modalidade do país. Apesar de revolucionar o esporte nacional com a Liga, os anos seguintes a sua criação marcaram o início da derrocada da CBFS. Nas últimas décadas, a instituição se afogou em denúncias de desvio de dinheiro, greves de jogadores e dívidas financeiras. Para seguir existindo, se escora em torneios desvalorizados e cobranças escorchantes de seus filiados.
“Desde quando me tornei jogador da seleção, em 2001, eu via abertamente o quanto a Confederação é mal gerida”, conta o jogador Neto, de 40 anos, campeão mundial em 2012. “As pessoas não tinham preocupação em fomentar o esporte ou melhorar a estrutura, apesar de terem dinheiro para isso”, analisa. O jogador, que atua pelo Praia Clube de Uberlândia, se refere aos anos em que a administração de Borba Vasconcelos fechou contratos de patrocínios com grandes estatais do país, como Correios e Petrobras, que ilustrava a camisa da seleção durante as partidas.
Eram os anos dourados, com Manoel Tobias e Falcão em quadra, os dois maiores jogadores da história do esporte. Em oposição, Neto conta que os jogadores não tinham uniforme adequado, nem recebiam diárias pelos serviços prestados ao time nacional. “O pessoal de 1,60m usava camisa GG, porque era a única que tinha. Posso dizer que a CBFS tinha contratos muito grandes com as empresas, e sabíamos que elas pagavam a CBFS. Mas a confederação repassar esse dinheiro para o esporte… isso a gente não via”, relembra.
Uma pequena melhora ocorreu entre 2005 e 2009, quando PC de Oliveira se tornou treinador da seleção. De acordo com Neto, PC era o responsável por “blindar os jogadores da CBFS e peitar a gestão por melhorias”. Não à toa, o Brasil foi campeão mundial em 2008 e repetiu o feito quatro anos depois —quando Neto fez o gol do título e foi eleito o melhor jogador do torneio.
Mas a conquista marcou o último ano positivo do futsal brasileiro. O período entre 2012 e 2015 foi manchado por greves de jogadores. Segundo Neto, a Confederação trocou a equipe técnica da seleção e afirmou que alguns atletas, como Neto, Falcão e o goleiro Tiago, não seriam mais convocados, por conta da postura fora de quadra. “Nossas greves eram por mais transparência, pedindo para que tentassem trazer de novo bons patrocinadores e investissem o dinheiro no esporte. De repente vimos que a luta era enxugar gelo. Então alguns resolveram voltar à seleção [em 2015], mas o ânimo da galera de brigar por uma melhoria sumiu”, lamenta o jogador.
Nesse meio tempo, a CBFS vendeu um centro de treinamento construído em 1999 exclusivamente para a seleção brasileira de futsal, na região metropolitana de Fortaleza. “O local era o melhor possível, mas a CBFS conseguiu destruir o próprio patrimônio. Não havia manutenção alguma”, afirma Neto. O CT foi utilizado pela última vez em 2013 e negociado com um grupo imobiliário em 2016.
O pico da crise aconteceu em 2014, quando surgiram as principais denúncias de corrupção e desvio de dinheiro contra Aécio de Borba Vasconcelos, então presidente da CBFS. A gestão teria desviado verbas de patrocínios que deveriam ter sido direcionadas aos clubes da Liga Nacional de Futsal. Vasconcelos respondeu às denúncias com sua renúncia ao cargo. O desgaste abriu caminho para que a LNF passasse a ser administrada de forma independente. A CBFS perdeu, assim, o controle da maior competição do esporte no país, que se tornou responsabilidade exclusiva dos clubes participantes.
O EL PAÍS teve acesso a um documento assinado pelo sucessor de Vasconcelos, Renan Pimentel Tavares de Menezes, em que a CBFS confessava dever mais de 1,7 milhão de reais à LNF, referentes aos contratos de patrocínio. O documento data de 23 de março de 2015. A dívida milionária com os clubes era apenas uma parte do passivo da confederação. Neto, por exemplo, reclama que a CBFS deve a ele ao menos 30.000 reais em compromissos não cumpridos ao longo dos anos em que defendeu a seleção. Existem pelo menos outros 30 processos nos tribunais de justiça de Ceará e São Paulo contra a CBFS, entre ações trabalhistas de jogadores, treinadores, dirigentes e pessoas jurídicas. “Não entrei [na Justiça] porque não tive paciência. Sei que outros fizeram, e eles não cobram nada além do justo. Em 2012 fomos campeões, e não recebemos nada”, reclama Neto.
Felipe Ezabella, diretor jurídico da LNF, explica que o valor confessado nunca foi quitado pela CBFS. “Tivemos que fazer uma composição, porque a Confederação não tem dinheiro para pagar. Foi um acordo geral, onde a Liga também não teria mais que repassar uma porcentagem anual previamente acordada para a CBFS, e também outros acertos relacionados às competições”, explica. “Preferimos assim, para apaziguar os ânimos e, hoje, não existe nenhuma pendência jurídica entre as entidades”, justifica. Atualmente a CBFS é presidida por Marcos Antônio Madeira, que substituiu Renan Tavares.
Segunda linha
Depois que a CBFS perdeu o controle de seu principal campeonato por má gestão financeira, sobrou a ela organizar a tradicional Taça Brasil. Em 2017, a Confederação criou uma nova competição para administrar, a Copa do Brasil. Os torneios são feitos de tal forma que os clubes ou cidades interessados compram da CBFS o direito de sediá-los. Em 2019, por exemplo, o Atlântico Erechim comprou o direito de sede, levou a competição para Erechim e foi o campeão. Em 2021, o Magnus Futsal venceu o torneio sediado em Dourados, que tinha o Juventude como representante da cidade. O licenciamento do torneio garante entrada de dinheiro e poupa a confederação das despesas com a organização.
É dessas competições secundárias que a CBFS tira a maior parte do seu faturamento. Levando em conta apenas a categoria masculina adulta da Taça Brasil, ela arrecada 30.000 reais anualmente ao vender para a sede interessada. Além disso, cada equipe paga 4.000 reais à CBFS para jogar a Taça Brasil, e mais 4.000 reais para jogar a Copa do Brasil —competições administradas pela Confederação, mas organizadas pelos compradores. Além disso, se um time da Liga Nacional (que é independente da CBFS) contrata um jogador de outro Estado, deve repassar mais 2.000 reais para a CBFS.
Essas, entre outras outras taxas e anuidades fixas, que envolvem também inscrições em modalidades feminina e de base, não são o bastante, contudo, para sustentar a instituição. As dívidas trabalhistas e as denúncias de corrupção levaram a Confederação a uma situação financeira precária. Sem o comando do principal torneio nacional desde 2014 e sem a gestão da seleção brasileira desde abril último, a CBFS se apoia nessas taxas e torneios para tentar permanecer relevante.
A desorganização tem reflexos na seleção brasileira, principal expoente nacional do esporte. Quando a situação já era decadente, os bicampeões foram eliminados nas oitavas de final da Copa de 2016, para o Irã, na pior campanha da história brasileira. A preparação para o Mundial de 2021 foi atribulada, e não só por conta do adiamento pela pandemia de covid-19. Fora os jogos eliminatórios, organizados pela Conmebol, o Brasil fez só um amistoso em 2020. Foi na Espanha, foi bancado pela federação espanhola. E o Brasil usou inclusive patrocínios espanhóis em seu uniforme.
“A nossa dificuldade é pegar nossos atletas e se organizar dentro de uma estrutura”, desabafou o treinador Marquinhos Xavier após a vitória contra o Japão, nas oitavas da Copa deste ano. “O Brasil precisa entender que, sem organização, estrutura e trabalho, vamos sofrer. Pagamos o preço pelo que acontece fora da quadra”, pontuou ele mesmo depois de vencer o jogo. O Brasil acabou caindo para a Argentina na semifinal do torneio, ao perder por 2 a 1 na última quarta-feira.
“A CBF assumir o controle é benéfico para a seleção brasileira, porque a estrutura e o poder aquisitivo são muito maiores”, garante Neto. O jogador lembra, no entanto, que a amarelinha é apenas a ponta final da organização do esporte no país. As seguidas eliminações na Copa do Mundo são consequências da má gestão na base do futsal. “Perdemos muitas coisas que não chegaram aos ouvidos das pessoas nos últimos anos de CBFS. Em questão estrutural, de fomentação do esporte, organização dos torneios e convocações para a seleção. Assim, não há como se desenvolver do jeito que precisamos”, atesta o jogador.
Em contato com o EL PAÍS, a CBF afirmou que não comentaria o assunto até o fim da disputa da Copa do Mundo, que terminou em 2 de outubro. E nada comentou. Já a CBFS não retornou as tentativas de contato até o fechamento desta reportagem.
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