Almodóvar e as feridas de guerra
Cineasta retorna ao território da maternidade com seu novo filme, ‘Madres Paralelas’, e sua atriz preferida, Penélope Cruz. Além disso, entra no campo da memória histórica com uma trama de mulheres e valas comuns, em busca da justiça e da verdade
A filmografia de Pedro Almodóvar costuma estar secretamente conectada. Em Abraços Partidos (2009) já aparecia um cartaz de Madres Paralelas, cujo embrião rondava a cabeça do cineasta espanhol. “Era a história de duas parturientes que se conheciam no hosp...
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A filmografia de Pedro Almodóvar costuma estar secretamente conectada. Em Abraços Partidos (2009) já aparecia um cartaz de Madres Paralelas, cujo embrião rondava a cabeça do cineasta espanhol. “Era a história de duas parturientes que se conheciam no hospital e que depois, por uma série de circunstâncias, buscavam uma à outra. O desenvolvimento de uma parte da história não deu certo, eu não gostava, e a deixei de lado; mas a semente ficou.” Quando começou a pandemia, Lola García, seu braço direito, sugeriu-lhe que terminasse aquele roteiro. “Ela conhece a fundo tudo o que tenho armazenado no meu computador, além de ser a única que entende minha letra e minhas correções. Seu vínculo com meus roteiros é muito estreito. Ela me incentivou a escrever Julieta e agora Madres Paralelas.”
Depois do sucesso de Dor e Glória, em que ele próprio se transformou em seu personagem, Almodóvar (Calzada de Calatrava, 1949) retorna ao território da maternidade com um filme em que a orfandade e a memória histórica se cruzam naquele que talvez seja seu libelo político mais explícito: ele se considera filho da Transição Espanhola (o período entre a morte do general Francisco Franco, em 1975, e a entrada em vigor da Constituição de 1978), mas seu filme representa uma reação contra o chamado Pacto do Esquecimento da democracia, com uma homenagem às famílias dos desaparecidos do franquismo. Não é a primeira vez que ele evoca, por meio de um cordão umbilical problemático, a ditadura: já fez isso em Carne Trêmula (1997), também através de uma parturiente, Penélope Cruz. “Porque Madres Paralelas fala de ancestrais e descendentes, e, nos dois casos, da busca da verdade, a íntima e a histórica”, conta o cineasta em uma calorosa tarde madrilenha.
Imerso na depuração formal que começou com Julieta —sua mãe mais americana, inspirada em contos de Alice Munro— e que encontrou sua expressão máxima em seu filme anterior e no curta-metragem La Voz Humana, Almodóvar entra, através de uma mistura de gêneros que vão do cinema noir ao melodrama e até ao documentário, em um cenário de cores verde e vermelha já familiar para seu público; de cozinhas que funcionam como o coração de seus personagens, de longos diálogos, e de mulheres e maternidades feridas. Penélope Cruz, Milena Smit e Aitana Sánchez-Gijón são as três mães de um filme do qual também participam Israel Elejalde, Rossy de Palma e Julieta Serrano. Poucos personagens devido às restrições sanitárias que o obrigaram a paralisar a adaptação dos contos de Manual da Faxineira, de Lucia Berlin, e que se somam às limitações de mobilidade do diretor desde sua operação nas costas, há sete anos.
“Este é um filme que fala de maternidades diferentes, ou de formas diferentes de abordar a maternidade”, explica Almodóvar. “De mães imperfeitas, como todas nós somos”, acrescenta Aitana Sánchez-Gijón, que interpreta uma atriz que coloca sua vocação à frente de sua filha (Milena Smit) adolescente e mãe de primeira viagem. Um perfil que o diretor já explorou em De Salto Alto (1991). “Todas as maternidades são complexas, mesmo as mais felizes e saudáveis”, afirma Penélope Cruz, que faz a personagem principal, uma fotógrafa solteira que enfrenta um dilema moral que afeta seu próprio bebê enquanto luta para realizar o desejo de sua avó morta: exumar os restos mortais de seu bisavô, executado nos arredores de seu povoado após o golpe de Estado de julho de 1936. Para Almodóvar, essa personagem central, filha de uma hippie dos anos setenta que a batizou de Janis em homenagem a Janis Joplin, é “a mãe absoluta”. “Ela sozinha forma um núcleo familiar, não precisa nem de um homem ao seu lado”, afirma. “Foi uma menina abandonada e para mim essa é a chave de tudo o que ela faz, eu a defendo porque é uma boa pessoa”, acrescenta a atriz. “Essa ansiedade que ela tem de ser mãe”, emenda o cineasta, “nasce por ter perdido a dela quando era criança. Um sentimento que já estava em sua avó, a mulher que a criou, e cuja perda vem da guerra. Neta e avó foram irmãs em sua orfandade”.
O anúncio de que Madres Paralelas abre a competição oficial do Festival de Veneza nesta quarta-feira e fecha o Festival de Nova York em 8 de outubro coincidiu com a aprovação, na Espanha, da Lei da Memória Democrática, que revisa e atualiza a Lei da Memória Histórica promovida há 14 anos pelo chefe socialista de Governo José Luis Rodríguez Zapatero. Almodóvar abre e fecha seu filme com histórias de famílias que ainda procuram os restos mortais de seus parentes. No início, faz isso com fotografias documentais e com a voz de sua atriz principal; no final, com uma emocionante homenagem aos desaparecidos. Produtor do documentário sobre os crimes do franquismo O Silêncio dos Outros, de Almudena Carracedo e Robert Bahar, o cineasta lembra o início daquele filme em que uma idosa depositava flores na rodovia construída sobre a cova de sua mãe: “Resta muito pouco tempo, cada vez haverá mais rodovias e menos memória. Não se trata nem de vingança nem de ajuste de contas, mas do mínimo de dignidade que qualquer ser humano merece”. Preocupado com a deterioração institucional da Espanha, um país “no qual estamos vivendo coisas gravíssimas e estamos nos acostumando a ouvir e ver atrocidades”, o diretor rejeita expressões como “feridas do passado”. “Não poderiam ser mais atuais quando nesta mesma semana, finalmente, foi aprovada uma lei que transforma em crime a exaltação do franquismo e que permitirá que os frades beneditinos − sobre os quais, aliás, eu adoraria fazer um documentário e um filme − não permaneçam mais no Vale dos Caídos”, destaca
Seu pai foi surpreendido pela guerra aos 19 anos em uma área republicana. Quando os combates acabaram, teve de cumprir três anos de serviço militar. “Na minha casa, não tivemos cultura política”, prossegue Almodóvar. “[Meu pai] morreu em 1980 sem falar da guerra..., e devia ter seus motivos. Hoje eu lhe faria mil perguntas, mas naquela época não me interessei em fazer isso. Acho que o silêncio foi algo que se impôs na maioria das famílias. Tive consciência de classe desde muito pequeno —e ainda tenho, embora agora tenha dinheiro. A consciência política veio mais tarde, quando comecei a trabalhar na Telefónica. Em 1976 fizemos a primeira greve e, como represália, quiseram nos demitir. Pertencíamos às Comissões Operárias e fomos defendidos pelos advogados de Atocha, entre eles Manuela Carmena, que conheço desde então, lembro que era muito bonita e estilosa. Aqueles anos passaram muito rápido, os anos oitenta chegaram imediatamente e o que ocorreu eu não vivo como uma contradição: abracei a noite e o que ficou conhecido como La Movida, um movimento [cultural] que se caracterizava pelo hedonismo, pela liberdade e por ser basicamente apolítico. Os mais jovens, como Alaska, tinham 14 anos e nem sabiam o que eram os grises [”cinzentos”, como era conhecida a polícia franquista]. Mas os que éramos mais velhos, como Paloma Chamorro, Blanca Sánchez, Quico Rivas..., tínhamos consciência política. Sou afortunado por ter vivido aqueles anos. La Movida ocorreu no Governo da UCD [União do Centro Democrático], não no do PSOE [Partido Socialista Operário espanhol], embora isso dê na mesma, porque La Movida não pertencia a nenhum Governo, era nossa, das ruas. Em Pepi, Luci, Bom não aparece nem sombra da ditadura, porque negá-la era minha forma de me vingar dela. Sou fruto da Transição e da democracia, mas tenho um sentimento ambivalente sobre aquele momento histórico, e isso tem a ver com a lei de anistia, que mais uma vez condenou os desaparecidos à sarjeta. Entendo que naquele momento era um preço necessário, mas não depois, nos anos noventa, com os socialistas no Governo − esse teria sido o momento ideal.”
No início de Carne Trêmula, a voz de Manuel Fraga declarava através do rádio o último estado de exceção, imposto em 1970. Uma alusão direta à ditadura em um filme que, assim como Madres Paralelas, apontava a orfandade como marca de identidade de um país. A conexão entre as duas obras é inevitável ao ver Penélope Cruz dar à luz mais uma vez diante da câmera do cineasta, agora em um moderno hospital e não em um ônibus, como ocorria na famosa sequência em que Pilar Bardem atuou como parteira improvisada com aquela que viria a ser sua nora na vida real. “Essa sequência foi dirigida por Pilar, porque eu não sabia nada sobre partos. Ela tinha experiência e tomou as rédeas”, lembra Almodóvar sobre a atriz recém-falecida. “Era uma mulher muito divertida, ouvi-la falar era um espetáculo, porque tinha toda a memória de sua família e dos comediantes antigos.”
“Aquela cena foi um ensaio para a vida que viria depois, e foi também meu início com Pedro”, lembra Penélope Cruz. “Eu tinha me apresentado para um teste de Kika, mas Pedro não me escolheu por ser muito ‘pequena’, não jovem, ele me disse ‘pequena’. Lembro que me enviou um bilhete dizendo para não me preocupar, que escreveria algo especial para mim. E muito especial. A esta altura lemos a mente um do outro, mas algo de tudo o que veio depois em nossa relação já estava naquele primeiro encontro. Nós nos reconhecemos instantaneamente. Existem coincidências demais entre nós, e muitas nem pode ser expressas em palavras. Olho para ele e sei o que quer para a personagem. Pedro nunca foi um segredo para mim, e ao mesmo tempo é sempre uma caixa de surpresas. Este novo papel não era nada fácil para mim, mas sua exigência me dá muita segurança, sinto-me protegida. Outro dia ele me disse que não quer que eu sofra tanto ao atuar, e respondi: ‘Olha só quem fala!’. Acredito que somos dois intensos, por isso nos entendemos.”
O cineasta diz que hoje poucas coisas o agradam tanto quanto dirigir atores, e se desfaz em elogios para os seus: “É preciso dizer: são todos maravilhosos”. Ele se empolga quando fala da “tremenda voz” de Israel Elejalde; do potencial da “atriz do ano”, a jovem Milena Smit; da “verdade” no monólogo de seis minutos de Aitana Sánchez-Gijón, e de sua eterna gratidão pela dedicação de sua adorada médium, Penélope Cruz. “Desta vez precisei de muita concentração, porque o que ele nos pediu foi que ficássemos exatamente no momento anterior e posterior à explosão de uma emoção”, conta a atriz. “Foi esgotador, mas muito interessante. Nos ensaios, aconteceram coisas muito curiosas comigo. Um dia, estava com um boneco nos braços e quando se aproximaram para tirá-lo me lancei como uma leoa, sem reparar que era só um boneco. Fiquei surpresa ao me ver assim.”
“Pedro exige muito, trabalhar com ele é um desafio, mas desde o começo me senti muito à vontade”, afirma Sánchez-Gijón. “Encontrei um homem muito amável e atencioso. Tivemos muitos encontros em sua casa, diante de um pratinho de presunto, e ele, com muita delicadeza, sugeria ideias, mas sempre era receptivo às minhas propostas. Achei que quando a filmagem começasse eu passaria, como todos, para segundo plano, mas não foi assim. Foi prazeroso. Seu processo com os atores é muito teatral, ele nos dedica um espaço e um tempo que não são habituais no cinema.”
O teatro é, sem dúvida, uma das paixões de um diretor que, no entanto, não volta aos palcos desde os anos setenta, quando passou pela mítica companhia Los Goliardos. Mas o teatro não deixa de estar presente em seu cinema: do papel central que Um Bonde Chamado Desejo teve em Tudo Sobre Minha Mãe (1999) à sua conhecida fascinação por Jean Cocteau e Lorca, aqui evocado através de Dona Rosinha, a Solteira (“não é por acaso que Lorca está neste trabalho, ele é o grande símbolo dos desaparecidos do franquismo”, destaca). Além disso, Madres Paralelas é teatral em sua estrutura: “O roteiro deste filme poderia ser levado aos palcos do jeito que está”, assinala o cineasta. “Talvez exista mesmo em mim um anseio por algo que nunca vivi plenamente, mas a outra razão é bem pragmática e tem a ver com minhas próprias dificuldades de mobilidade física. Eu, que admiro cada vez mais Bergman, esse sim um homem de teatro, o que gosto cada vez mais é de dirigir e aprofundar o trabalho com apenas dois ou três atores.”
Se algo pareceu definir a nova filmagem do cineasta, foi uma calma incomum em um diretor perfeccionista e meticuloso. O trabalho foi concluído uma semana e meia antes do previsto, enquanto a montagem avançava sob o comando de Teresa Font, que a partir de Dor e Glória substituiu José Salcedo, editor dos 20 longas anteriores de Almodóvar e um de seus colaboradores mais estreitos. Em três filmes, Font estabeleceu um método de trabalho em que as sequências, filmadas quase cronologicamente, são montadas de um dia para o outro. “Durante a filmagem, tenho uma salinha onde Pedro e eu vamos comentando as sequências e depois, aos sábados, já na verdadeira sala de edição, revisamos o trabalho da semana. No início eu temia não estar à altura, mas Esther García [produtora de A Lei do Desejo] e José Luis Alcaine [diretor de fotografia] me convenceram. Parece estranho, mas eu não tinha essa ambição”, diz Font, que trabalhou em todos os filmes de Vicente Aranda e em quase todos de Imanol Uribe, que montou Jamón, Jamón e O Dia da Besta e que tem no currículo nomes tão díspares como Joaquín Jordá e Terry Gilliam. “Nós, editores, temos complexo de intrometidos, acontece com todos, e além disso há o fator da química com os diretores, que não se pode prever. A conexão pessoal é muito importante em nosso trabalho. Almodóvar foi uma surpresa total na minha vida, tanto que estou feliz com ele. Descobri um homem humilde, que te deixa trabalhar e te incentiva. Ele sabe ver, e isso não é nada fácil. Estou aprendendo muito com ele, com seu refinamento, porque ele tem tudo muito claro, mas continua sendo ousado e radical. Ele vai ao essencial, não quer perder tempo, tem a sabedoria dos grandes clássicos do cinema.”
“Sou tão exigente como sempre, mas acho que com Dor e Glória me livrei de grande parte da ansiedade que tinha ao dirigir”, confessa o diretor. “As filmagens me provocavam tanto prazer como angústia, a ponto de me deixar doente. Muitas vezes ampliei os problemas, embora em outras tenham existido motivos bem reais. Os anos me ajudaram a ter paciência na hora de conseguir as coisas que quero de um ator. Em um filme, toda a equipe está literalmente conectada a você, e a ansiedade ou tranquilidade é contagiante. É verdade que as últimas filmagens têm sido idílicas, mas que ninguém se engane, por trás de trabalhos infernais, aqueles que você tem de reescrever enquanto filma, há grandes filmes, embora demoremos para aceitá-los. É importante assumir essa aceitação porque todos os filmes, gostemos ou não, têm um final. Ficar satisfeito é impossível, nem sei o que é isso, mas os filmes são suas circunstâncias, com o tempo você aprende a vê-los com outros olhos.”
Alguns dos momentos mais surpreendentes de Madres Paralelas ocorrem com fotografias em preto e branco. Almodóvar aproveita o fato de sua personagem principal ser fotógrafa para homenagear esse meio através da obra do galego Virxilio Viéitez, do nova-iorquino Richard Avedon e do catalão Oriol Maspons, cujo retrato de uma mãe hippie com seu bebê na Ibiza dos anos setenta coroa uma das sequências mais portentosas de um filme que também fala sobre novos modelos de família. “O avô da personagem de Penélope era fotógrafo, e sou apaixonado por aqueles antigos retratistas espanhóis de estúdio, pelo ritual, pelos retoques... As fotos que tenho da minha mãe são desse tipo e têm um encanto enorme.”
Não deixa de ser surpreendente que a fotografia, com toda a sua melancolia oitocentista, mas também com o seu poder evocativo e transformador, surja neste momento de inflexão para a grande linguagem do século XX, o cinema. Almodóvar costuma mostrar sua preocupação com uma tendência que poderia terminar com o ritual social da sala de cinema, mas desta vez acaba de voltar do último Festival de Cannes, realizado em julho depois de ter sido suspenso em 2020 devido à pandemia, com otimismo renovado. “A energia e o nível dos filmes que vi lá me devolveram toda a esperança”, diz com um DVD debaixo do braço e já a caminho de sua casa. “Sim, sou dos que continuam comprando DVD. Outro dia, almoçando com Jodie Foster [o cineasta foi o encarregado de entregar a Palma de Ouro Honorária à atriz americana], veio à tona a obra de Dorothy Arzner, uma das pioneiras do cinema. Tenho muito interesse por sua obra. A gente acha que sabe tudo, mas felizmente isso nunca ocorre.”
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