‘Tudo sobre minha mãe’
Em 1999, Pedro Almodóvar rodou seu 13º filme. Com este drama novo e pessoal, o cineasta fez sucesso em todo o mundo
A melhor reflexão sobre Tudo sobre minha mãe foi um comentário espontâneo que ouvi na saída da estreia do filme no festival de Cannes de 1999, feito por Catherine Deneuve, que deixava a sala do Palais du Festival altamente emocionada pelo filme que tínhamos acabado de ver: “Pedro tem razão, os homens não são necessários”. E durante o jantar, cercada de cinéfilos franceses ou afrancesados, a grande dama do cinema europeu nos confessou que, sem que ela soubesse muito bem por que, Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar, a fez pensar em Cidade das mulheres, de Fellini, que, num dia do final dos anos 1960, levou o pai de sua filha Nadia, Marcello Mastroianni, a atravessar como gato escaldado em direção à grande derrota machista ocorrida no final do século passado.
Creio que Deneuve, que naquela época estava filmando com Lars von Trier (Dançando no escuro), estava com ciúmes da dedicatória final de Almodóvar em Tudo sobre minha mãe: “À Bette Davis de A malvada, à Romy Schneider de l’Important c’est d’aimer e à Gena Rowlands de Noite de estreia, de Cassavetes”. Deneuve, que tinha sido várias vezes a inspiração de Buñuel, também desejava a atenção de Pedro Almodóvar. Porque, antes de mais nada, esse 13º filme de Almodóvar é também, ao mesmo tempo, a melhor homenagem que se pode fazer às grandes atrizes do cinema. Os homens não são necessários, sim, mas as mulheres, e não apenas as mulheres de La Mancha da infância de Almodóvar, têm que sobreviver ao machismo representando, fingindo, ocultando e procurando a bondade de desconhecidos.
Mulheres sós que, por acidentes cotidianos, precisam ser atrizes magníficas para conseguir ser donas de sua própria solidão, e atrizes como a Huma do filme, a tremenda Marisa Paredes, que fingem ter companhia para melhor representar nas telas a ideia fundamental da solidão feminina. Assim se vai desenhando o projeto de Tudo sobre minha mãe, um melodrama sem complexos intelectuais que expulsa o homem redundante da cidade das mulheres almodovarianas e recria um gênero cinematográfico clássico a partir da transgressão de absolutamente todos os tabus fabricados sobre o amor, o sexo, o casal, a maternidade e a família burguesa. Desde Douglas Sirk, que há meio século inventou as cores do melodrama, não tínhamos visto uma reinterpretação do gênero tão brilhante, atualizada e emocionante quanto esse filme de Almodóvar. Trata-se de chorar e fazer chorar (aos personagens, às atrizes, ao público), mas com os materiais vivos do presente e do futuro da condição humana. Alguns críticos escreveram sobre a pós-modernização do melodrama a propósito desse filme, aplicando a Almodóvar o estigma pós-moderno da agitação madrilenha. Mas, ainda que seja o caso de continuar a aplicar prefixos redutores, creio que aqui, nesta hora e pouco, trata-se exclusivamente do prefixo “trans”: transexualidade, transplantes, transmissão de sentimentos e de vírus, transtextualidade. Definitivamente, o melodrama transgressor como transmodernidade.
O filme começa com a morte acidental do filho (Eloy Azorín) de uma enfermeira de transplantes de órgãos chamada Manuela (Cecilia Roth), por culpa de um autógrafo não conseguido de uma atriz que ambos admiravam, Huma, na saída de uma apresentação madrilenha chuvosa de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. Marcela retorna a Barcelona para procurar o pai (Lola, um travesti interpretado por Toni Miró) e lhe dizer que seu filho morreu. Em Barcelona, ela encontrará sentido para sua solidão profunda através de uma série de mulheres com quem vai conviver e entre as quais rapidamente se cria uma solidariedade espontânea e se concretiza a ideia da bondade de desconhecidos, tão querida por Almodóvar.
São elas: Agrado (Antonia San Juan), um transexual que exerce a prostituição e é todo sentimento, risos e silicone; Rosa (Penélope Cruz), uma freira de família burguesa (Rosa María Sardá e Fernando Fernán-Gómez) que engravidou de Lola e dela contraiu Aids; Nina, a amante junkie de Huma (Marisa Paredes), viciada no tabaco, o teatro e o papel de atriz. Depois de percorrer a cidade das mulheres de Barcelona (às vezes explicitamente fellinianas, como na magnífica sequência da prostituição a campo descoberto), Manuela, que chega a viver momentos de grande intensidade solidária (a festa memorável com Agrado, Rosa e Huma, à base de Freixenet, confidências e amendoim), acaba aceitando a maternidade do bebê soropositivo que Rosa, que morre no parto, tem com o travesti Lola, o pai letal do filho que morreu por culpa do não autógrafo de Huma, desencadeando a aventura.
Almodóvar estica as cordas teatrais do melodrama, que sempre foi um gênero realista, sim, mas contaminado pelo delírio e que busca os artifícios extremos, até inverossímeis da imaginação e sobretudo do próprio gênero cinematográfico. Assim, a partir desses materiais radicalmente femininos e transmodernos, nos oferece uma história contemporânea e emocional que procura apenas ser um “oceano de dor”. Foi o próprio Almodóvar quem disse um dia em 1993 na saída de um filme de John Cassavetes com Gena Rowlands: “Ontem vi Noite de estreia e o recebi como a confidência de que participo plenamente de uma emoção ativa. (...) Foi uma das emoções mais intensas de minha vida, e vou sentir orgulho se algum dia puder fazer um filme assim. Ele tem todos os elementos que eu gosto no cinema: uma atriz, uma obra teatral, a relação com o diretor, o amante que é um ator e um incomensurável oceano de dor.”
Ele o conseguiu e até o superou. Não esqueçamos que o início de Tudo sobre minha mãe, com o acidente do filho de Manuela, debaixo da chuva, na busca de um autógrafo na saída do teatro, é uma recriação expressa daquela sequência inicial de Noite de estreia, em que a jovem fã de Myrtle/Huma (Gena Rowlands/Marisa Paredes) também tem 17 anos e esperava aquela manhã como um dos melhores dias de sua vida.
Mankiewicz, Cassavetes, Tennesse Williams, Fellini e o delírio de l’Important c’est d’aimer. Para que não reste a menor dúvida quanto às intenções melodramáticas e transgressoras de Almodóvar na hora de desatar esse imenso oceano de dor trans em que o manchego corrige aquele grande erro da Bíblia assinalado por Deneuve na saída da estreia do filme em Cannes. Deus não criou primeiro o homem, mas Eva.
Perdoar tudo
Feito em 1999, Tudo sobre minha mãe é estrelado por Cecilia Roth, Marisa Paredes, Candela Peña, Antonia San Juan, Penélope Cruz, Rosa María Sardà, Fernando Fernán-Gómez, Toni Cantó e Eloy Azorín nos papéis principais. Roteiro e direção: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar. Produtor executivo: Agustín Almodóvar. Produtor associado: Michel Ruben. Diretora de produção: Esther García. Música original: Alberto Iglesias. Fotografia: Affonso Beato. Som: Manuel Rejas. Montagem: José Salcedo.
Guillermo Cabrera Infante escreveu sobre o filme no EL PAÍS: "Tudo sobre minha mãe poderia ter como divisa uma frase famosa de uma mulher, Madame De Stael, que disse: 'Tudo compreender é tudo perdoar'. Essa é a filosofia de Pedro Almodóvar."
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