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Branko Milanovic: “A China é um país capitalista?”

O Estado não tem tanto peso na economia do gigante asiático como pensamos, escreve o economista em seu último livro, ‘Capitalismo sem rivais’ (ed. Todavia)

Camponeses da província de Hunan, na fronteira com Hubei, no dia 5 de março.
Camponeses da província de Hunan, na fronteira com Hubei, no dia 5 de março.NOEL CELIS/AFP/Getty Images

Mas será a China realmente um país capitalista? Trata-se de uma pergunta feita com frequência — às vezes de forma apenas retórica, outras vezes de forma genuína. Podemos responder-lhe com certa brevidade usando a definição-padrão de capitalismo de Marx e Weber (...). Para ser classificada como capitalista, uma sociedade deve estar organizada de tal modo que sua produção seja empreendida a partir da propriedade privada dos meios de produção (capital, terra), que a maioria dos trabalhadores seja assalariada (sem estar atrelada legalmente à terra ou trabalhar como autônoma, usando seu próprio capital) e que a maior parte das decisões referentes à produção e à fixação de preços seja tomada de modo descentralizado (ou seja, sem que alguém as imponha às empresas). A China se mostra claramente capitalista nesses três quesitos.

Antes de 1978, a taxa de participação das empresas estatais (EE) no conjunto da produção do país estava próxima de 100%, já que a maioria das indústrias pertencia ao Estado. Elas operavam de acordo com um planejamento central, que, embora mais flexível e abrangendo um leque muito menor de mercadorias do que ocorria na União Soviética, incluía, de toda maneira, todos os setores industriais essenciais (carvão e outros minerais, aço, petróleo, água, luz, gás etc.), alguns deles até hoje mantidos predominantemente por EEs. Em 1998, a participação do Estado na produção industrial já havia caído pela metade, ficando em torno de 50%. Desde então, ela vem declinando ano a ano, de forma consistente, encontrando-se hoje pouco acima de 20%.

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A situação na agricultura é mais clara ainda. Antes das reformas, a maior parte da produção era comandada pelas autoridades das comunas locais. A partir de 1978, com a introdução do “sistema de responsabilidade”, que permitiu o arrendamento privado de terras, quase a totalidade da produção passou a ser realizada de modo privado — embora obviamente os agricultores não sejam trabalhadores assalariados e sim, em sua maioria, autônomos, dentro daquilo que a terminologia marxista chama de “produção simples de mercadoria”. Esse sempre foi, historicamente, o modo típico de organização da agricultura chinesa, de modo que a estrutura atual de propriedade nas áreas rurais constitui de certa forma um retorno ao passado (com uma diferença significativa —a ausência de latifundiários). Mas, à medida que prossegue o êxodo rural em direção às cidades, é provável também que mais relações capitalistas de produção se instalem na agricultura do país. Podemos mencionar também as empresas localizadas em pequenas cidades ou vilarejos (empresas de propriedade coletiva), que, embora menos importantes hoje do que no passado, cresceram rapidamente utilizando os ganhos obtidos com a mão de obra rural para produzir mercadorias não agrícolas. Elas usam trabalho assalariado, mas sua estrutura de propriedade, que combina, em proporções diversas, participação do Estado (ainda que apenas no nível local), cooperativas e propriedades puramente privadas, é bastante complexa e varia conforme a região do país.

As empresas privadas não só são muitas numericamente como também são de grandes dimensões. De acordo com dados oficiais, a participação de empresas privadas no 1% das maiores companhias por valor total agregado cresceu de cerca de 40% em 1998 para 65% em 2007 (Bai, Hsieh e Song, 2014).

Os modelos de propriedade na China são complexos, envolvendo com frequência, em proporções variadas, participação estatal —nos níveis central, provincial e comunal—, privada e estrangeira. Mas o peso do Estado no PIB, calculado no que se refere à produção, dificilmente passa de 20%, enquanto a mão de obra empregada nas EEs e nas empresas de propriedade coletiva corresponde a 9% do total, incluindo campo e cidade (Anuário Estatístico sobre Trabalho na China 2017). Esses percentuais se assemelham aos registrados na França no começo dos anos 1980 (Milanović, 1989). Como veremos (...), uma das características do capitalismo político é, com efeito, que o Estado desempenha um papel significativo, para além do seu papel de mero representante, por meio da propriedade formal de capital. Mas o que pretendo aqui, neste momento, é apenas descartar certos questionamentos existentes quanto à natureza capitalista da economia chinesa —questionamentos feitos não em bases empíricas (já que os dados os contrariam nitidamente), mas apenas pelo fato, concreto, de que o partido dominante é chamado de “comunista”, como se isso, por si só, bastasse para determinar a natureza de um sistema econômico.

A distribuição dos investimentos fixos entre os diversos tipos de propriedade também mostra uma tendência clara de crescimento do investimento privado. Este já é responsável por mais da metade dos investimentos fixos, enquanto a participação do Estado é de cerca de 30% (o restante provém do setor coletivo e do investimento privado estrangeiro).

Zonas rurais e urbanas

A mudança se reflete de modo gritante também na participação dos trabalhadores das EEs no conjunto dos empregos existentes nas cidades. Antes das reformas, quase 80% dos trabalhadores urbanos trabalhavam em EEs. Atualmente, depois de uma diminuição contínua, ano a ano, essa participação está abaixo de 16%. Nas áreas rurais, a privatização de facto da terra por meio do sistema de responsabilidade transformou quase todos os trabalhadores rurais em agricultores do setor privado.

Por fim, o contraste entre os modos de produção socialista e capitalista aparece mais acentuadamente na descentralização das decisões relativas à produção e à precificação. No início das reformas, o Estado determinava os preços de 93% dos produtos agrícolas, 100% dos produtos industriais e 97% das mercadorias do varejo. Em meados dos anos 1990, as proporções se inverteram: 93% dos preços do varejo eram definidos pelo mercado, assim como 79% dos preços de produtos agrícolas e de 81% dos produtos industriais (Pei, 2006, p. 125). Hoje, o percentual de preços determinados pelo mercado é ainda mais alto.

Branko Milanovic (Belgrado, 1953) é um economista especialista em desigualdade, além de professor na City University de Nova York e na London School of Economics. Este texto pertence ao livro ‘Capitalismo sem rivais’, lançado pela editora Todavia.

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