‘A última floresta’, uma ode à existência Yanomami
Documentário de Luiz Bolognesi, com roteiro de Davi Kopenawa, retrata com poesia e força estética o rico cotidiano de um povo guardião da Amazônia
Cinema é um sonho que as pessoas sonham juntas numa sala escura, segundo a definição de Davi Kopenawa, xamã e líder do povo Yanomami. Foi isso que ele disse a Luiz Bolognesi quando o cineasta lhe contou o desejo de fazer um filme sobre seu povo: o projeto só ...
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Cinema é um sonho que as pessoas sonham juntas numa sala escura, segundo a definição de Davi Kopenawa, xamã e líder do povo Yanomami. Foi isso que ele disse a Luiz Bolognesi quando o cineasta lhe contou o desejo de fazer um filme sobre seu povo: o projeto só seria possível se o homem branco convivesse na aldeia indigena, passasse noites dormindo nas redes e sonhando junto com os homens, mulheres e crianças da comunidade Watoriki, na Terra Indígena Yanomami ―um vasto território de quase 10 milhões de hectares divididos entre os Estados do Amazonas e Roraima. Dessa vivência onírica nasceu o documentário A última floresta, dirigido por Bolognesi e roteirizado por ele e Davi, que conta com uma beleza poética e urgente o rico cotidiano desse povo e sua resistência e luta contra os garimpeiros que, desde 2019, voltaram a invadir com maior virulência seu território, envenenando rios, derrubando a floresta, adoecendo seus guardiões.
“O povo da cidade escuta, mas não acredita”, afirma Davi sobre as atrocidades contra a natureza e os povos originários. Há décadas, ele viaja o mundo para alertar sobre como a sanha pelo capital destrói justamente o que há de maior valor no planeta. Dá palestras, escreveu um livro —A queda do céu (Companhia das Letras)— e agora recorre à sétima arte para contar a história do seu povo. “Para vocês, que vivem na cidade, mais importante é a mercadoria. Apesar de ter muita mercadoria, o branco não divide. Fazer muita mercadoria faz mal para a floresta. Para nós, importante são os animais da floresta, a fertilidade. Importante é dividir o alimento entre nosso povo, nossa sobrevivência, nosso conhecimento, nossa forma de viver e a nossa existência como povo”, diz ele, com gestual simples, palavras curtas e diretas em seu idioma num auditório da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
A última floresta, totalmente contado na língua Yanomami, é justamente uma ode à existência e cultura desse povo. O documentário, já exibido em mostras em meio mundo e vencedor do prêmio do público na mostra Panorama no último Festival de Berlim, em março, chega aos cinemas brasileiros justamente no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiria sobre a tese do marco temporal para terras indígenas —segundo a qual só poderão ser considerados territórios de povos nativos aqueles ocupados ou reivindicados por eles até a promulgação da Constituição de 1988. O julgamento, que levou milhares de representantes desses povos a Brasília para reivindicar seu direito à terra, foi suspenso nesta quinta-feira, 15 de setembro, após o ministro Alexandre de Moraes pediu vista no caso. O magistrado requereu mais tempo para decidir seu voto sobre o tema, que agora pode ser decidido antes pelo Congresso Nacional, onde tramita um projeto de lei (PL 490/2007) sobre o assunto.
No filme, o espectador é lembrado que, em 1986, a descoberta de ouro no território Yanomami levou à invasão de 45.000 garimpeiros e a morte de 1.500 a 1.800 indígenas. Em 1992, o Governo brasileiro reconheceu legalmente as terras desse povo, mas, um ano depois, garimpeiros invadiram uma aldeia e mataram a tiros 16 pessoas, no que ficou conhecido como o Massacre de Haximu. Agora, “eles estão voltando”, conforme Davi alerta pelo rádio aos parentes de outras aldeias. Desde 2019, com o início do Governo de Jair Bolsonaro, 20.000 garimpeiros voltaram a invadir esse território, causando a devastação ambiental e ainda levando a praga da covid-19 às aldeias.
Quem assiste A última floresta não vê, no entanto, imagens da terra vermelho-sangue ferida pelo garimpo ou das grandes crateras órfãs de árvores. Não se trata de um filme-denúncia, mas não deixa de ser um manifesto. Os Yanomami, que escreveram em conjunto o roteiro, conforme conta Davi, não queriam uma obra onde aparecessem como “coitadinhos, vítimas de pele e osso morrendo nas redes”. “Esse filme deve ser uma flecha que viaje o mundo contando nossa verdadeira imagem”, diz o xamã. Ali estão sua origem e sua cosmovisão. Entre as histórias que a comunidade Wataroki decidiu contar —o roteiro foi uma decisão coletiva—, tem destaque a da criação dos Yanomami, filhos de Omama, regente da natureza, com Thueyoma, a primeira mulher. Também estão presentes os xapiri, espíritos criados por Omama para proteger seus filhos da morte, doenças e outras maldades.
Imagens de um cotidiano tão trivial quanto um café da manhã se mesclam com as de cerimônias espirituais e de atuação (ou fabulação) em que os membros da comunidade interpretam as histórias que compõe a essência de sua filosofia e cultura. A câmera, no entanto, longe de ser invasiva, é quase um elemento divino onipresente, uma flecha que avança pela floresta, colada à pele dos indígenas, de uma beleza bronzeada e calor magenta que contrasta com o verde abundante do cenário.
“De início, os Yanomami sentiam um incômodo diante da câmera. Havia uma percepção quase de roubo de imagem”, lembra Luiz Bolognesi. No período em que passou na comunidade, o cineasta e sua equipe de cinco pessoas foram aproximando a ferramenta dos protagonistas, até que eles se sentissem à vontade para rir diante da beleza de sua própria imagem captada pela lente. “O objetivo sempre foi fazer do filme um cesto capaz de carregar as histórias que eles quisessem contar”, diz o diretor, fazendo referência aos objetos tradicionais tecidos em cipó pelas mulheres da comunidade.
Bolognesi lembra o antropólogo Viveiro de Castro, que diz que os povos originários não fazem poesia porque sua própria fala já é poesia. Nesse sentido, a escolha por não fazer um filme antropológico, mas um retrato lírico, ainda que objetivo, da existência Yanomami não poderia ser mais acertada. As cenas dos rituais xamânicos lembram, por exemplo, a plasticidade das imagens de Claudia Andujar, fotógrafa que, durante 50 anos, retratou esse povo. “Claudia é uma grande referência eticamente, não só esteticamente, porque ela colocou a fotografia a serviço dos indígenas”, afirma o diretor. A última floresta faz o mesmo.
No dia 1º de setembro, os moradores (e atores) da comunidade Watoriki viram, pela primeira vez, o sonho do cinema realizado: assistiram, sérios e em silêncio, à projeção do documentário e depois, sem dizer nada, foram dormir. Foi a primeira —e até agora única— exibição do documentário sem legendas. No dia seguinte, ao amanhecer, procuraram o diretor para abraçá-lo. Disseram-lhe que, devido ao seu cabelo grisalho, ele era um “pássaro branco da floresta”. Chamaram-no Luiz Bolognesi. Sorriram ao lançar mais uma lança de resistência, uma flecha que, com a proteção dos xapiri, há de atravessar o mundo para fazer ouvir a verdade dos guardiões da última floresta.
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