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Sinéad O’Connor conta sua insuportável verdade de uma vez por todas

Em seu livro de memórias, ‘Rememberings’, a cantora esmiúça sua vida instável, desde os maus-tratos da mãe aos ataques que sofreu pela indústria da música e seus últimos anos em clínicas de recuperação mental

Sinéad O'Connor na Holanda em 1989.
Sinéad O'Connor na Holanda em 1989.Michel Linssen (Redferns)
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Os maus-tratos que Sinéad O’Connor sofreu quando criança por parte da mãe, e que ela relata em suas memórias, perturbam o leitor. “Sou a menina que chora de medo no último dia antes das férias de verão. Tenho que fingir que perdi meu taco de hóquei porque sei que, se o levar para casa, minha mãe vai bater em mim com ele durante todo o verão. Embora talvez prefira o escovão de limpar tapetes. Ela vai me fazer tirar a roupa, vai me obrigar a deitar no chão e abrir os braços e as pernas, para me fazer permitir que bata nas minhas partes íntimas com o cabo da vassoura.”

Sinéad O’Connor (Glenageary, Condado de Dublin, 54 anos) tinha combinado uma entrevista esta semana para este jornal para falar sobre Rememberings: scenes from my complicated life (Lembranças: cenas da minha vida complicada, ainda sem tradução no Brasil), suas memórias que serão lançadas na Espanha em 21 de junho. Poucos dias antes o encontro foi suspenso. “Não está bem”, informam na editora. Horas depois, escreveu um texto em sua conta no Twitter informando sobre sua aposentadoria. “Esta mensagem é para anunciar que não estou mais em turnê e que estou me aposentando da indústria musical.” Dias depois, recuou: “Boas notícias. Foda-se a aposentadoria. Eu me retrato”.

Rememberings vem para preencher um monte de lacunas cobertas por especulações sobre a vida instável de uma das personagens mais lesadas pela indústria cultural recente. Nessas páginas está sua verdade, às vezes dura de ler, que ela conhece melhor do que ninguém. Sim, tentou suicídio aos 33 anos, afetada, entre outras coisas, pela batalha pela guarda dos dois primeiros filhos (tem quatro). Também confessa seu vício em maconha, embora tenha experimentado quase todas as drogas: descreve um dia louco com Dee Dee Ramone que começa no Hotel Chelsea, de Nova York, quando o baixista do The Ramones a convida para algumas trips.

Sinéad O'Connor rasga a foto de João Pablo II em outubro de 1992 no programa de televisão 'Saturday Night Live'.
Sinéad O'Connor rasga a foto de João Pablo II em outubro de 1992 no programa de televisão 'Saturday Night Live'.Yvonne Hemsey (Getty Images)

A cantora acerta as contas com alguns machos alfa do rock: “Em sua autobiografia, Anthony Kiedis [cantor do Red Hot Chili Peppers] confessa que nos beijamos. Isso nunca aconteceu. Diz que mantivemos uma espécie de relacionamento romântico. Sim, em seus sonhos”. Ou se rebela contra a ideia geral de que o dia em que despedaçou (em 1992) uma foto do papa João Paulo II no programa Saturday Night Live foi o gatilho para jogar no lixo sua trajetória meteórica até aquele momento. “O que fez minha carreira descarrilar foi ter um disco no número 1 [das paradas]. Rasgar a foto me colocou de volta no caminho certo. Tinha que voltar a ganhar a vida tocando ao vivo. Porque nasci para isso. Não nasci para ser uma estrela do pop. Porque para isso você tem que ser uma boa menina. Não ser problemática demais.”

Kurt Cobain e Courtney Love mostram sua filha Frances Bean em companhia de Sinéad O'Connor na cerimônia de premiação da MTV Video Music em 1993.
Kurt Cobain e Courtney Love mostram sua filha Frances Bean em companhia de Sinéad O'Connor na cerimônia de premiação da MTV Video Music em 1993.KMazur (WireImage)

Pode ser que a cantora irlandesa esteja certa. O’Connor tinha 19 anos quando começou a conhecer os tubarões da indústria da música, que viram muitas possibilidades em uma garota com uma voz que parecia saída das profundezas de uma alma ferida. Ela não cantava: entoava salmos curadores. Todos intuíam que era uma criatura gravemente ferida, mas ninguém quis jogar-lhe uma manta para acolhê-la. Ao contrário: tentaram enquadrá-la. Exigiram que deixasse o cabelo crescer, que usasse saias estreitas, que se mostrasse sexy. Ela respondeu colocando calças e raspando os cabelos. E foi essa rebelião, exatamente quando começou a carreira, que na realidade provocou o descarrilamento. Porque não permitem alguém ingovernável em um mundo de controladores.

Em muitas partes do livro a cantora demonstra seu desprezo pela indústria musical que ela retrata como mesquinha, capaz de pressioná-la a fazer um aborto quando engravidou três meses antes de lançar seu primeiro trabalho. O’Connor teve uma infância de espancamentos por parte da mãe. Seus pais se divorciaram quando estava com oito anos. O pai ficou com a guarda dos quatro filhos, mas Sinéad e John, seu irmão mais novo, voltaram para a mãe porque sentiram sua falta. Durante sete anos Sinéad sofreu abusos da mãe. Aos 14 anos, foi internada em um “centro de reabilitação para menores com problemas de comportamento”. Aos 15 anos ingressou em um internato religioso. Aos 17, fugiu.

Sinéad O'Connor no dia de sua primeira comunhão, em foto cedida pela cantora à editora
Sinéad O'Connor no dia de sua primeira comunhão, em foto cedida pela cantora à editora

Durante a infância e a adolescência, ela desenvolveu uma rebeldia e também uma profunda fragilidade. Quando completou 18 anos, a mãe morreu em um acidente de carro. Agora poderia voar sem amarras. Em meados dos anos 80, se pôs a gravar seu primeiro álbum. Não gostou da produção final. Tentaram convencê-la de que os arranjos celtas a fariam vender mais. Não engoliu isso: com apenas 20 anos, autoproduziu o primeiro álbum, The lion and the cobra (1987). O disco ficou entre os 30 mais vendidos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Mas o salto veio com o segundo, em 1990, I do not want what I haven’t got, número 1 em vendas e que inclui uma música pela qual será lembrada para sempre, Nothing compares 2U, escrita por Prince. O’Connor escreve sobre sua vida sem armadilhas dramáticas. Relata situações dolorosas, mas sem lacrimejar. A linguagem é seca e exala humor, qualquer que seja o tema. Apesar de todos os abusos sofridos, tem palavras carinhosas para a mãe. “Não pude deixar de pensar o quanto [sua mãe] gostaria de estar lá”, diz sobre o momento em que recebeu um prêmio Grammy.

A cantora revê suas decisões profissionais incompreendidas em um ambiente que não aceita de bom grado dissidentes. Recusa-se a ir receber prêmios ante a irritação da indústria. “Sou uma punk, no sentido de que sou uma vândala, não uma estrela pop”, escreve. Um de seus argumentos para não participar das cerimônias é denunciar os abusos de menores. Mas “como se atreve essa pequena arrivista irlandesa a associar música com abuso de menores?”, conta, referindo-se ao que pensava o establishment musical. Diz que chegaram a atacá-la com um objeto pontiagudo em uma festa na casa do ator Eddie Murphy. O mundo contra ela. Mas não esmorece. Dedica 14 páginas a esmiuçar seu encontro na casa de Prince, que, segundo ele, resulta em assédio por parte do cantor. Consegue escapar, mas ele a persegue de carro até que a cantora consegue fazê-lo ir embora, ameaçando avisar os vizinhos.

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Ele se espraia no incidente com a foto de João Paulo II. Afirma que faz isso para denunciar os abusos da Igreja. A foto do Papa que ela rasga diante das câmeras pertencia a sua mãe, devota. Toda decisão que ela toma naquela época provoca rejeição. Também entre colegas de profissão. Frank Sinatra a chama de “menina estúpida” por não querer que o hino dos Estados Unidos fosse tocado antes de um show (“a menos que Jimi Hendrix o toque, todos os hinos levantam muitas e muito petrificantes associações para os empertigados do mundo”, diz), Madonna zomba dela e entidades como a Liga Antidifamação convocam manifestações para destruir seus discos. Algumas dessas decisões de O’Connor ganharam outra perspectiva ao longo dos anos. Como a mais polêmica, a denúncia dos abusos da Igreja encobertos pela própria instituição. Em 2019, o papa Francisco pôs fim ao segredo pontifício sobre essa questão espinhosa. O’Connor estava 27 anos à frente.

Na parte final das memórias, descreve sua penosa situação nos últimos tempos, com quatro anos percorrendo várias instituições de recuperação mental. Atribui isso a uma histerectomia radical (retirada de todo o aparelho reprodutor: útero, trompas, ovários ...) que desembocou em “uma crise nervosa total” e que ela acredita ter sido um erro de diagnóstico do médico. Em Rememberings pouco fala sobre o que aconteceu desde 1992 (só comenta os discos gravados), já que quando sua narrativa transcorria por aquele ano ela sofreu o colapso nervoso de 2014. “Durante os quatro anos que levei para me recuperar da crise não escrevi mais nada, e quando me recuperei, era incapaz de lembrar em grande medida tudo o que tinha acontecido antes”, se justifica. E acrescenta sobre a sua situação entre 2014-2018: “Ninguém que me conhecia queria ter algo a ver comigo. Eu estava tão fora de mim que todos tinham medo de mim.”

Confirma que sofre de anorexia, agorafobia, que é fumante compulsiva, e denuncia que “estão sempre roubando coisas dela”. Enfatiza que tem quatro filhos com quatro pais diferentes. “Com um com quem me casei. Eu também me casei com outros três homens, mas nenhum deles é pai de nenhum dos meus filhos.” Apesar de toda essa família, ela mora sozinha em sua casa irlandesa. Sempre usa o hijab, desde que abraçou o islamismo em 2018. Revela que, depois de quatro anos de instabilidade, deixou o hospital em 2018 com 8.000 dólares (41.000 reais) no banco. Seus desejos agora são lançar um disco em janeiro de 2022 (que já tem um título, Veteran dies alone) e ir para a faculdade para obter um diploma na área de enfermagem.

Uma das últimas aparições ao vivo, em San Francisco, em 7 de fevereiro de 2020. Apresenta-se com o hijab desde que se converteu ao islamismo.
Uma das últimas aparições ao vivo, em San Francisco, em 7 de fevereiro de 2020. Apresenta-se com o hijab desde que se converteu ao islamismo. Tim Mosenfelder (Getty Images)

As memórias terminam com um epílogo/carta ao pai, que ainda está vivo. Nela exime tanto a ele como à mãe por seus problemas mentais. Diz que nasceu com “uma anomalia cerebral derivada do DNA dos O’Grady” (o ramo materno), que se acentuou ao sofrer um acidente aos 11 anos quando estava parada na plataforma de um trem e uma criança que viajava nele abriu a porta antes que o vagão parasse e bateu violentamente na cabeça dela. E conclui, com humor, apesar de tudo: “Portanto, mesmo que tivesse tido São José e a Virgem Maria como pais e tivesse sido criada na Little House on the Prairie (Seriado que se passa em uma cidade bucólica), sua filha ainda continuaria sendo mais louca do que uma cabra e totalmente descontrolada”.

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