Adriana Calcanhotto: “A política cultural é inexistente no Brasil”

Isolada em uma casa no meio da Mata Atlântica, a cantora e compositora produziu e lançou o álbum ‘Só’. Em conversa com o EL PAÍS, ela fala sobre a quarentena e os problemas do país

A cantora Adriana Calcanhotto.Leonardo Aversa
São Paulo -
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Adriana Calcanhotto se propôs a escrever uma canção por dia durante a quarentena, em uma brincadeira que chamou de “uma canção até o almoço”, enquanto vive o período isolada em uma sua casa no meio da Mata Atlântica, no Rio de Janeiro. O resultado foi o recém-lançado álbum , com nove músicas inéditas totalmente escritas, gravadas e produzidas em 43 dias de isolamento. Em formato quase de um diário de quarentena, com as datas e horários anotadas para cada canção, o trabalho vai do samba ao funk, passando por baladas e pitadas de música eletrônica. “O que me inspirou a compor foi a própria quarentena, que me deu uma oportunidade de foco e de ócio criativo”, diz ela em entrevista ao EL PAÍS.

A cantora e compositora, que já flertava com o que chama de “um funk mais híbrido”, contou com Dennis DJ para fazer batidas que casam bem com o tom lúdico de algumas das letras, como a de Bunda lê lê. Além dele, o cantor e compositor Arthur Nogueira coproduziu , que também conta com Leo Chaves, Rafael Rocha (percussão), Bruno Di Lullo (violão e baixo), Bem Gil (guitarra), Zé Manoel (piano) e Chibatinha (guitarrista do grupo baiano Attooxxa). “A experiência de gravar com cada músico em um lugar não é novidade para mim. Posso estar, por exemplo, em Coimbra, dando aula e, ao mesmo tempo, ouvindo uma mixagem que chega de um disco”, diz Adriana, que ministra, de março a maio, o curso Como escrever canções na universidade portuguesa.

Em Só —dedicado a Moraes Moreira, que faleceu em abril—, ela reflete sobre o momento em que todos “estamos amontoados e sós”, olhando uns aos outros desde janelas, e também, de certa forma —mas jamais diretamente— sobre o lugar do Brasil no meio da pandemia, com suas muitas crises sociais e políticas. Na faixa O que temos, por exemplo, ela incluiu o barulho de um panelaço contra o presidente Jair Bolsonaro.

Pergunta. Você dedica o álbum a Moraes Moreira. De que forma ele e sua sonoridade influenciaram seu trabalho?

Resposta. O Moraes Moreira é o homem da alegria, ele foi um dos maiores representantes da alegria em seu trabalho, nas canções, em sua postura, em sua vida. Eu ouvia e via na televisão o Moraes Moreira desde que eu era adolescente e depois tive a oportunidade de conhecê-lo, não intimamente, mas nos encontramos por coincidência em aeroportos, programas de tevê... E tínhamos um afeto muito profundo, uma identificação. Nós nos gostamos desde a primeira vez que nos vimos pessoalmente. Acho que o fato de ele ter falecido no meio da pandemia, embora não por covid-19, tornou tudo ainda mais triste pela impossibilidade de despedida dele. O Brasil não teve a chance de se despedir do representante da alegria. No momento em que vi isso, essa tristeza, quis dedicar o álbum a ele, pensando nessa ideia oswaldiana de que a alegria é a prova dos nove. É tudo por ele, mas é por isso também.

P. O que te inspirou a compor tanto durante a quarentena?

R. O que me inspirou a compor durante a quarentena foi a própria quarentena, num certo sentido. Foi essa oportunidade que a quarentena dá de foco, de estar em casa, de ter menos interrupções, de não ter que sair, não ter que viajar. Isso propicia, para mim, um ambiente de concentração e ócio criativo. Fora isso, o pano de fundo, as notícias de tudo o que está acontecendo... Eu moro em uma casa no meio da mata e só posso saber do mundo através das notícias. Esse eco do caos do mundo e, ao mesmo tempo, um tempo vazio, de ócio, me deram a possibilidade de me expressar a respeito da situação.

P. Como tem sido sua rotina nesses dias? Como você lida com uma reclusão imposta pela força das circunstâncias?

R. Eu tenho um temperamento adaptável. Se não é para sair, eu não fico questionando, não fico me frustrando nem criando armadilhas internas. E quando eu estou em casa, eu adoro estar em casa, com os bichos, com a natureza, com a mata. Eu não estou infeliz de estar aqui. Agora, mesmo que eu não gostasse, estaria me adaptando a essa situação, em vez de me debater. Acho que isso me ajudou a ter uma disciplina para compor. Durante essa época do ano, de março a maio, quando dou aulas de composição em Coimbra, meu cérebro já está condicionado a investigar a feitura, a construção e o alcance das canções. Acho que isso também foi propício para a criação desse álbum.

P. Ainda está compondo outras canções? Tem escrito também poesia ou outras coisas?

R. Eu não tenho escrito nem inventado nada que não sejam canções. Eu vim no ritmo de uma canção por dia, nessa brincadeira que eu chamei de uma canção até o almoço. Não sabia que estava fazendo um álbum, mas no momento em que ficou claro para mim que era uma coletânea de canções da mesma safra, comecei a trabalhar nos arranjos, a ouvir as faixas que chegavam, a trabalhar propriamente na gravação do álbum, e aí esse impulso de composição arrefeceu. Uma vez o disco pronto, as coisas encaminhadas, já voltei a compor. No momento, atendendo a compromissos referentes ao álbum, fazendo algumas lives, ainda não voltei àquele momento totalmente isolada, dentro do estudiozinho, para poder compor uma música por dia. Mas não duvido que isso volte a acontecer, porque, desde que o disco está pronto, já fiz três canções novas.

P. Na apresentação do álbum, você agradece aos profissionais de saúde e a “todos os trabalhadores da linha de frente na guerra contra o vírus da ignorância”. Como avalia a situação do Brasil em meio à pandemia?

R. Não é nem minha avaliação, são os fatos: a situação do Brasil em meio à pandemia é péssima. Temos as equipes de saúde, os médicos e enfermeiros que estão dando tudo de si para salvar vidas, e a Presidência pedindo para as pessoas saírem às ruas... Não estamos nada bem.

P. Você canta que estamos “amontoados e sós”. É do time que acredita que a humanidade pode sair melhor da tragédia, que as pessoas podem aprender empatia e solidariedade?

R. Sim, eu sou do time que escolhe acreditar que a humanidade pode sair melhor, é uma oportunidade. Já vimos na história da humanidade finais de epidemias e pestes que fazem com que as coisas sejam vistas de outras maneiras, se iluminem. Há essa possibilidade e oportunidade de as pessoas aprenderem solidariedade e civilidade. Acho muito difícil uma pessoa que não tem empatia simplesmente aprender isso, mas existem as pessoas que acreditam que a gente pode começar uma coisa nova... As pessoas dizem ‘vamos voltar ao normal’, mas que normal? Não tinha nada normal, as coisas estavam péssimas. O máximo que admito é que, quando voltarmos ao anormal, podemos, assim, inventar alguma coisa nova.

P. Em O que temos, você incluiu o som de um panelaço contra Jair Bolsonaro. O que pensa do governo brasileiro? Como avalia, por exemplo, a política cultural, eclipsada por trocas constantes de líderes à frente da pasta de Cultura em Brasília?

R. Eu não me sinto em condições de avaliar a política cultural do Governo de Jair Bolsonaro porque não encontrei, não conheço, não acho que exista essa política cultural. A primeira coisa seria voltar a pasta ao status de ministério e não de secretaria. Mas não sou capaz de fazer essa avaliação, porque penso que essa política é inexistente.

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