Por que as mulheres, sempre relegadas à cozinha, não são as chefs estrelas da gastronomia?
Em ‘Fominismo’, jornalista francesa esmiúça o paradoxo das mulheres, segregadas historicamente ao papel de cozinheira das famílias, hoje sem reconhecimento nos grandes restaurantes
Por que a quantidade mulheres chefas de cozinhas reconhecidas em prêmios e listas internacionais, como o Guia Michelin e World’s 50 Best Restaurants, é infinitamente menor que a de homens? Por que na série da Netflix Chef’s Table há tantos chefes homens e menos da metade de mulheres? Por que as mulheres, diferentemente de outras fêmeas entre os mamíferos, são, normalmente, menores que os homens? Quantas mulheres trabalham na cozinha e quantas são reconhecidas por serem chefs? Por que, afinal, somos coadjuvantes em um lugar onde historicamente exercemos o papel principal?
“Por que as mulheres, detentoras de um saber há anos transmitido de mãe para filha, não ocupam as cozinhas dos restaurantes?” Assim, de maneira direta, a jornalista e pesquisadora francesa Nora Bouazzouni inicia seu livro Fominismo – quando o machismo se senta à mesa (editora Quintal). Na publicação, lançada em 2017 na França e no ano passado no Brasil, a autora se arma de dados e informações coletados ao redor do mundo para destrinchar a paradoxal relação das mulheres com a comida.
Ainda que as mulheres tenham sido as responsáveis por cozinhar e garantir a mesa posta ao longo dos séculos, são também elas que não recebem o reconhecimento profissional à frente de uma cozinha – ou de uma mesa de jantar. “Seja pela divisão do trabalho, pela segregação alimentar ou pela orientação das práticas de consumo por meio de proibições, discriminações ou ditames estéticos, a comida serve para manter as mulheres no lugar que lhes foi designado, há milênios, no espaço ou na sociedade”, questiona a autora. “No meio da gastronomia, as mulheres continuam sendo impedidas por injustiças estruturais ou discriminações sistêmicas: machismo, assédio, bancos reticentes a lhes ceder empréstimos, redes de contato femininas menos desenvolvidas, licença paternidade mínima, ou mesmo inexistente...”, disse Nora, de Paris, por e-mail ao EL PAÍS. “Elas têm frequentemente menos tempo, menos condições e menos poder que os homens, o que as torna menos disponíveis, ou seja, menos visíveis em termos midiáticos -- penso sobretudo nas competições do tipo Top Chef e Masterchef, nos food festivals, cujas programações estão longe de serem igualitárias, ou ainda nos jurados, que são frequentemente 100% masculinos”. Na edição brasileira, há uma mulher, Paola Carosella, e dois homens, Henrique Fogaça e Eric Jacquin.
Mas Nora não fala somente sobre o reconhecimento profissional das mulheres à frente de uma cozinha. De acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), mencionado no livro, as mulheres constituem por volta de 43% da mão de obra agrícola no mundo, mas representam menos de 20% dos proprietários fundiários de terra. “Pelo mundo todo, as mulheres são responsáveis por uma segurança alimentar que elas mesmas não usufruem”, diz Nora. É por isso que programas desenvolvidos em regiões secas e semi-áridas para a construção de cisternas priorizam as mulheres. Do sertão do Brasil, ao deserto do Senegal, quando a busca pela água ganha uma solução, sobra tempo para que as mulheres, responsáveis também por isso, se organizem politicamente, trabalhem e até garantam independência econômica.
Além dessas questões que surgiram com a modernidade, a autora volta aos primórdios para mostrar que às mulheres foram oferecida a comida de pior qualidade, com menor quantidade de gordura, historicamente. E que essa pode ser uma das razões para explicar por quê a mulher ao longo da evolução foi diminuindo, até chegar ao conceito de que as mulheres são mais fracas ou ao mito de que “homens precisam comer mais carne”. Segundo a autora, existe uma tendência, mesmo que inconsciente, de oferecer menos alimentos às meninas do que aos meninos. Mas não há uma explicação fundamentada para isso.
Fominismo faz pensar sobre o jeito que comemos e por que comemos dessa forma. “É claro que se alimentar é um ato político”, diz Nora. “Eu acho que todo ato é político, quer estejamos conscientes dele ou não, quer tenhamos escolhas ou não. Viajar, se vestir, se alimentar... Por outro lado, não se pode permitir que a responsabilidade da mudança seja incumbência unicamente das mulheres!”
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