Traumas e consequências da escravidão tomam o foco do cinema nacional
Brasileiro ‘Todos os Mortos’, que disputará o Urso de Ouro na Berlinale, mostra a história de duas famílias depois da abolição da escravatura no país
Na São Paulo de 1899, uma década após a abolição, os fantasmas do passado ainda caminham entre os vivos. As mulheres da família Soares —a mãe, Isabel, e suas filhas, Maria e Ana, antigas proprietárias de terra, tentam se agarrar ao que resta de seus privilégios, enquanto Iná Nascimento, que viveu muito tempo escravizada, luta para reunir seus entes queridos em uma nova configuração social que ainda se apresenta hostil. A história arranca quando Josefina, empregada doméstica antes escravizada pela família Soares, morre. É entre o passado conturbado e o futuro incerto que a trama dessas mulheres se desenrola. Esse é o enredo de Todos os Mortos, filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra que concorrerá a um Urso de Ouro no Festival de Berlim (Berlinale).
“É a história de uma família de classe alta que perde posses com o fim da escravidão e se adapta a um contexto de classe média e de uma família negra que tenta encontrar um lugar nessa sociedade que não se preparou para recebê-los como cidadãos”, resume Gotardo ao EL PAÍS.
Todos os Mortos é o último de uma safra de filmes nacionais que voltam o olhar para o horror —figurativo e literal— da escravidão e suas cicatrizes históricas. Começou com Vazante (2017), de Daniela Thomas, que retrata a escravidão em uma fazenda mineira em 1821 pelo olhar de Beatriz, garota branca de 12 anos, e que foi tachado de racista por apresentar os personagens escravizados sem subjetividade (não tinham nomes ou falas). Na sequência, houve O Nó do Diabo (2017), longa de terror de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, que conta os horrores ao longo de 200 anos em uma fazenda canavieira.
Em dezembro, O Juízo, que trata literalmente dos fantasmas da escravidão no Brasil atual, chegou aos cinemas. Com roteiro de Fernanda Torres e direção de Andrucha Waddington, o filme faz um acerto de contas entre um negro escravizado e a família de seus algozes.
Caetano Gotardo considera que a revisitação desse período é um eco das recentes discussões sobre racismo e classe social no país. “Esses debates ficaram mais complexas e mais presentes no cotidiano. Além disso, temos as produções de realizadores negros, que pautam essas questões, tornando-se mais relevantes, possibilitando a construção de outros imaginários, diz.
Duas das obras que são destaque da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece na cidade mineira até o dia 1º de fevereiro, são exemplo disso. Um dia com Jerusa, longa de estreia de Viviane Ferreira, jovem negra da periferia de Salvador, mostra a formação de laços afetivos a partir de uma ancestralidade compartilhada. O encontro se dá quando Silvia, uma jovem pesquisadora de mercado bate à porta da solitária Jerusa, que se prepara para a celebração do aniversário de 77 anos. Jerusa conta à jovem histórias de sua vida e de seus antepassados, incluindo a época em que eles eram marcados com ferro e brasa como símbolo de propriedade, e Silvia tem visões mediúnicas dos seus próprios ancestrais. O outro filme realçado na Mostra é Egum, um curta de terror dirigido por Yuri Costa sobre o genocídio da população negra, que remonta aos séculos de escravidão no Brasil. Ambas produções têm equipes majoritariamente negras, desde a direção e o roteiro até funções como fotografia, direção de arte, figurino e som.
No caso de Todos os Mortos, o objetivo dos diretores era explorar o racismo estrutural. “Essa sensação de que a estrutura social que surgiu naquele momento ainda é presente na sociedade em que vivemos hoje”, diz Gotardo. O filme que concorre à maior honraria da Berlinale nasceu como ideia em 2012 e virou roteiro em 2013. “A situação do Brasil reforçou esse impulso de fazer um filme como esse. A reação contrária à Lei das Domésticas [Lei Complementar 150, de junho de 2015], por exemplo, que garantia os direitos trabalhistas devidos às empregadas, foi um desses momentos, foi um marco muito presente no início das discussões sobre a produção”, conta o diretor.
As filmagens aconteceram durante as eleições de 2018 e o longa foi montado durante todo o ano de 2019. “De lá para cá, muitas discussões sobre raça e classe no Brasil se tornaram mais complexas. Esses temas passaram a ser discutidos no nosso dia a dia e, durante esse período, o filme praticamente se reescreveu”, diz Gotardo, que não deixa de lado a problematização sobre uma obra como essa ser assinada por dois homens brancos. “Somos dois diretores brancos lidando com questões raciais, por isso, o filme fala muito de branquitude também, do lugar da branquitude. Acho que assumimos esse lugar de fala. É aquela história de que o racismo é um problema dos brancos, porque nós inventamos ele”, afirma.