Governo decide barrar viajantes de seis países africanos, após Bolsonaro afirmar que medida era “loucura”

Presidente se posicionou contra recomendação da própria Anvisa para evitar que ômicron, identificada na África do Sul, chegue ao país. À noite, ministro da Casa Civil afirmou que fronteiras aéreas serão fechadas

Presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia em Brasília, no dia 25 de novembro.UESLEI MARCELINO (Reuters)

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Na contramão de países europeus que já começam a impor medidas restritivas nos aeroportos por conta da identificação de uma nova variante de coronavírus mais agressiva vinda da África do Sul, o presidente Jair Bolsonaro chamou de “loucura” nesta sexta-feira a possibilidade de se limitar a entrada de estrangeiros no Brasil. Após gerar um novo campo de batalha, o Governo parece ter voltado atrás. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, afirmou em seu Twitter à noite que país restringirá passageiros vindos da África do Sul, Botsuana, Eswatini, Lesoto, Namíbia e Zimbábue, onde há registros da nova cepa. De acordo com ele, a portaria será publicada neste sábado e deverá vigorar a partir de segunda-feira.

Com mais de 30 mutações, a variante ômicron ―como foi nomeada pela Organização Mundial da Saúde― é potencialmente mais contagiosa e traz mudanças que podem indicar que ela tem a capacidade de escapar parcialmente da proteção das vacinas. Por enquanto, não há indícios claros de que os imunizantes disponíveis sejam incapazes de proteger contra esta variante, mas suas características levaram a Anvisa a recomendar ao Governo a suspensão temporária do desembarque de passageiros vindos dos países africanos onde já há registros da nova cepa. Na tarde desta sexta, os 27 países da União Europeia, Israel e Reino Unido adotaram a medida, seguida no final da tarde pelos Estados Unidos. O pedido, porém, gerou indignação no presidente. “Não vai vedar (a entrada do vírus), rapaz. Que loucura é essa? Fechou o aeroporto, o vírus não entra? Já está aqui dentro”, afirmou o mandatário a apoiadores no Alvorada nesta sexta, acrescentando que uma nova onda de covid-19 está “lamentavelmente” à caminho. “Tem que aprender a conviver com o vírus.” Mais tarde, diante da repercussão negativa, afirmou que o Brasil poderia instituir uma quarentena vinda de voos da Argentina, sem deixar claro se isso seria estendido a outros países.

A reação de Bolsonaro não destoa da postura errática adotada por ele desde o começo da pandemia. O presidente desobedeceu reiteradas vezes as regras sanitárias ao não usar máscaras e promover aglomerações. Também deixou de agir para evitar a propagação do vírus, ancorado na defesa de uma “cura milagrosa” com a cloroquina. Tudo isso gerou contra ele o pedido de indiciamento por nove crimes no relatório da CPI da Pandemia, dentre eles, charlatanismo, incitação ao crime e incitação à pandemia. Agora, enquanto a Procuradoria Geral da República ainda analisa o caso para decidir se irá de fato denunciá-lo, Bolsonaro volta a vaciferar na contramão das medidas não-farmacológicas de proteção ao recusar seguir as recomendações da Anvisa para evitar a chegada da ômicron.

“É uma variante que possui características mais agressivas e que, obviamente, requer das autoridades sanitárias mundiais medidas imediatas”, justificou o diretor da agência de vigilância brasileira, Antonio Barra Torres, em entrevista à GloboNews. “Já enviamos nossas notas técnicas para os ministérios da Casa Civil, Saúde, Infraestrutura e Justiça no sentido de que voos vindos desses países, são países localizados no sul do continente africano, sejam temporariamente bloqueados, não venham para o Brasil”, defendeu. O papel da Anvisa é fazer as recomendações sanitárias, mas cabe ao Poder Executivo tomar ou não as medidas. Diante das declarações de Bolsonaro, alguns senadores já articulavam acionar o Supremo Tribunal Federal e tentar obrigar o Governo a restringir voos advindos de países com casos da nova variante.

“Na posição de autoridade, Bolsonaro deveria agir para evitar a propagação da pandemia. Então qualquer ação dele no sentido contrário, e ele declarar isso que a população precisa aprender a lidar com o vírus, ele está abertamente se colocando favorável à propagação do vírus. Ou seja, está sim deixando de tomar as ações que deveria para evitar a propagação da pandemia”, afirma o advogado e médico sanitarista, Daniel de Araújo Dourado. “Bolsonaro nunca deixou de agir neste sentido”, emenda. Ele explica que a Anvisa apenas desempenhou seu papel institucional de vigilância dos portos, aeroportos e fronteiras. Nesta parte, a atuação da agência é vinculada ao Executivo e, portanto, dependia da decisão dele.

Esta não foi a primeira vez que o Governo Bolsonaro se contrapõs às recomendações da agência. Recentemente, a Anvisa orientou a exigência do comprovante de vacinação da covid-19 para a entrada no Brasil por via aérea ou terrestre. Os viajantes deveriam, conforme a agência, ter recebido a segunda dose ou dose única da vacina contra covid-19 há pelo menos 14 dias antes da data de embarque. Na quinta-feira, o ministro da Justiça, Anderson Torres, se disse contrário à exigência do certificado nas fronteiras, alegando que “a vacina não impede a transmissão da doença” —estudos comprovam que pessoas imunizadas transmitem menos o vírus.

O presidente também tem repetido há meses que não concorda com a exigência da vacinação, e ele mesmo não demonstra ter se vacinado. “Isso tudo vai pro mesmo caminho. A gente nunca saiu da guerra política”, afirma Dourado. Ele lembra que as ações de saúde pública são sempre fruto de natureza política, embora devam ser amparadas na ciência. “A impressão que a gente tem é que repetimos os mesmos erros de forma consistente. E quando falo nós, eu digo infelizmente as autoridades, que deveriam neste momento dar o exemplo e implementar medidas que cientificamente sabemos que são importantes para controlar a pandemia”, acrescenta a epidemiologista Ethel Maciel.

Para Dourado, o fato de o Brasil ter uma curva de vacinação positiva traz alguma tranquilidade neste momento na pandemia ―uma realidade diferente de muitos países europeus. “Até agora, a gente não tem evidência que essas novas variantes, inclusive a ômicron, escape da vacina. A gente está esperando os resultados”, afirma. A Pfizer já iniciou estudos para avaliar a eficácia de sua vacina contra esta cepa e deverá divulgar resultados nas próximas semanas.

“A situação do Brasil pela vacina é um pouco melhor, mas não significa que pode relaxar completamente. E para isso nem precisaria de uma nova variante. Só a delta já era suficiente para não podermos confiar só na vacinação ainda. Não tem como evitar restrições neste momento”, reitera Daniel. Ele lembra que, se for confirmada que a ômicron é muito mais transmissível, é difícil impedir que ela chegue ao Brasil, assim como ocorreu com a delta. A epidemiologista Ethel Maciel destaca que a restrição é fundamental para controlar a entrada da variante no país, uma medida aplicada com atraso com a variante delta. Ela acrescenta como outras medidas importantes a exigência da vacinação e do teste negativo para entrar no Brasil. “Segurar ao máximo a entrada dessas variantes é o melhor que se pode fazer para dar tempo de acelerar a vacinação”, defende Dourado. O país está com 61,72% de sua população com o esquema vacinal completo.

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