Pesquisadores se formam para trabalhar no exterior sob desmonte da ciência nacional
Cientistas veem “destruição planejada” em curso na área de ciência e tecnologia: “Estamos entregando de mão beijada um patrimônio nacional”
A bióloga Thabata Cavalcanti dos Santos, 27 anos, faz mestrado no programa de Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade na Universidade Federal do Ceará. Ela ingressou no curso de dois anos em 2021, ciente das dificuldades que iria encontrar em tempos da pandemia da covid-19. Mas não achou que seria tão difícil ao ponto de pensar em desistir. “Já chorei e tive vontade de desistir. Estou dando tudo de mim e não tenho retorno”, lamenta.
A estudante sabe que sua trajetória profissional é fruto de anos de investimento da sociedade brasileira. Foi aluna da escola pública e entrou na universidade por meio da lei de cotas. “Sempre agarrei as oportunidades com todas as minhas forças. Mas vejo que o que demorou anos e anos para o país construir na área de ciências, está sendo destruído na canetada por um Governo”, afirma. Sem incentivo financeiro para pesquisa, ela não consegue vislumbrar um futuro. “Quero criar uma ONG relacionada a serpentes peçonhentas, continuar o doutorado. Mas não sei meu futuro, porque olho para as contas e vejo outra realidade. Não sei se quero continuar nesse perrengue”, afirma.
Relatos como de Thabata Santos são comuns hoje na área de ciências do Brasil. “Hoje formamos profissionais para trabalhar no exterior”, lamenta Denise Freire, pró-reitora de pós-graduação e pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Freire lembra que são necessários anos de investimentos públicos em educação básica, saúde, universidade, mestrado e doutorado. E no momento em que o profissional está pronto para começar a dar retorno ao país, ele precisa sair de sua área de atuação em busca de oportunidades. “Temos fuga de cérebro para outras profissões como entregador e uber, que são trabalhos dignos, mas que não foram escolhidos por quem almeja um doutorado. Estamos entregando de mão beijada um patrimônio nacional.”
A pró-reitora vê uma “destruição planejada” em curso na área científica. O Governo não diz que vai cortar bolsas de pós-graduação, ele simplesmente extingue aquelas que foram defendidas, especialmente de cursos com notas mais baixas. Em alguns programas com notas mais altas, as bolsas até continuam, mas o que desaparece é o financiamento para pesquisa, como aportes para infraestrutura e manutenção de laboratórios. “De que adianta ter bolsa neste caso?”, pergunta.
Freire afirma que o Brasil está tendo que fazer escolhas difíceis na hora de definir quem poderá fazer pesquisa. “Tive uma demanda qualificada de 100 bolsas de pós-doutorado júnior, com projetos de alta qualidade. Mas para cada 100 qualificados, tínhamos apenas cinco bolsas”, conta a pesquisadora, que atuou no comitê de assessoramento do CNPQ de biotecnologia, uma área considerada estratégica dentro do Governo federal.
A manobra feita pelo Governo federal de redirecionar 600 milhões de reais em créditos suplementares liberados pelo Congresso para a ciência para outras áreas que o Ministério da Economia considerou prioritárias, acabou por tirar a esperança de pesquisadores. Isso porque o crédito recuperaria em parte o Orçamento extremamente combalido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Uma análise da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) mostra que os cortes impactam na execução de diversos projetos já anunciados pelo órgão, como a Chamada Universal 2021, principal edital de apoio a projetos científicos do país, que deveria receber 200 milhões de recursos complementares. Desde 2018, o CNPQ não liberava o edital, que saiu em setembro deste ano. A SBPC afirma que também estão ameaçados recursos da chamada para instituições do programa Ciência na Escola (100 milhões de reais); verba para os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (280 milhões dos); além dos programas Mestrado e Doutorado para Inovação (24 milhões) e projetos de Jovens Doutores (30 milhões), dentre outros.
“O edital Universal dá uma possibilidade para o pesquisador que começou a carreira a ter o primeiro financiamento”, afirma Denise Freire. Em nota, o CNPQ informou que Orçamento para o pagamento das bolsas implementadas e de projetos já contratados estão garantidos. “Não houve corte no Orçamento deste ano e, portanto, todas as bolsas e projetos já em andamento não são afetados com esses recursos perdidos com o remanejamento dos valores”, informou a entidade. O Orçamento do CNPq deste ano foi de 1,23 bilhão de reais, sendo cerca de 1 bilhão para bolsas de estudo e 10,4 milhões para fomento de pesquisa. Desde 2013, quando atingiu o pico de recursos, o órgão perdeu quase 30% de seu Orçamento para bolsas, queda que pode ser considerada até modesta se comparada com a situação dramática no setor de fomento, que teve seus recursos reduzidos em 90% desde 2010, quando o país registrou o maior investimento.
Sobrevida na resistência
A Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) com apoio de outras entidades realizou uma paralisação de alunos e professores no último dia 26 contra a mais recente manobra do Governo federal. Foi um ato modesto, em pontos específicos, como a avenida Paulista, na capital de São Paulo, e restrita aos grupos de estudantes nas redes sociais. Em nada lembra as manifestações que o setor realizou em 2019 em todo o país contra os primeiros avanços do Governo Bolsonaro sobre o orçamento de C&T. “A impressão que tenho é que os pesquisadores, após anos submetidos a um forte estresse, estão em situação de apatia”, afirma o biólogo e divulgador científico Hugo Fernandes, professor da Universidade Estadual do Ceará.
Fernandes teme um novo baque no setor caso o CNPQ não consiga honrar com a Chamada Universal. “Pesquisadores se organizaram num processo extenuante de concorrência, com regras novas, completamente modificado para disputar, muitas vezes, 100.000, 200.000 reais. É o que as universidades dos EUA usam para comprar reagente”, lamenta.
O pesquisador acompanha de perto a dificuldade de seus alunos para conseguir se manter e pesquisar sem os recursos públicos. É o caso de sua orientanda de mestrado, Thabata dos Santos, da UFC, que precisa ir à campo pesquisar seu objeto de pesquisa, a cobra peçonhenta surucucu pico de jaca ―uma serpente de três metros, ameaçada de extinção, que vive em conflito com as comunidades do Maciço de Baturité, região localizada no sertão cearense. A estudante ainda precisa realizar sete campanhas, de mais ou menos 12 dias cada uma delas, até o local de estudo. Para isso é necessário carro, gasolina e mesmo apoio de outros pesquisadores. “Tenho muita sorte de conseguir colaboração dos amigos para fazer campo de graça pela emoção de ver a serpente”, afirma a pesquisadora.
“Cientista brasileiro está tendo que inovar para conseguir uma sobrevida. Tenho feito até parceria com empresas para oferecer mini grants [micro bolsas] aos alunos”, conta Fernandes. O recurso, de 5.000 reais, vai garantir o mínimo para a realização de pesquisa no campo de alguns de seus alunos. “Temos uma cultura no Brasil de financiamento da ciência quase 100% dependente do meio público, mesmo quando a fonte é privada, o rito é o mesmo: um edital”, lembra. Essa burocracia afasta a iniciativa privada. “Na Europa e EUA são promovidos jantares com investidores interessados em fornecer bolsas de estudos. Aqui só o presidente pode fazer jantar com empresários.”
Apesar de defender uma maior flexibilização na captação de recursos, Fernandes diz que é contra o “discurso de coach barato” de que os cientistas podem sair dessa crise se se esforçarem. “É preciso se revoltar. Reivindicar os recursos da ciência. Reclamar. E, paralelamente, buscar saídas alternativas”, afirma. Sua orientanda segue essa cartilha: mantém a resistência, enquanto “pensa em vaquinha, rifa, propor cursos” para terminar sua pesquisa.
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