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Os primeiros efeitos da asfixia financeira de Bolsonaro sobre as ciências do Brasil

Governo bloqueou dinheiro de pesquisas e universidades para se adequar a teto de gastos. Várias instituições preveem faltar verba para água e luz e se queixam de movimento anticiência

Universidade Federal do Paraná.
Universidade Federal do Paraná.Marcos Solivan (SUCOM)

Primeiro a universidade não poderá pagar água e energia. Depois os contratos de prestação de serviços (como limpeza e segurança) deixarão de ser cumpridos. Em seguida, o restaurante universitário ficará sem recursos. Programas de assistência a estudantes pobres também estão ameaçados. E se a medida não for revista, o corte comprometerá as atividades da universidade já no segundo semestre deste ano. Este é um resumo dos primeiros efeitos da asfixia financeira de Bolsonaro na educação e ciências do Brasil, divulgado por várias instituições, como a Universidade Federal do Paraná (UFPR), que teve bloqueio de 30% de suas verbas de custeio, em 48 milhões de reais. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que teve suspensão de 41% das verbas destinadas à manutenção, no valor de 114 milhões de reais, apontou ainda o bloqueio de recursos para investimentos que impede o desenvolvimento de obras e compra de equipamentos para laboratórios e hospitais. "Há cinco anos a Universidade vem sofrendo cortes e contingenciamentos sem reposição. Em valores corrigidos, a diferença entre o orçamento de 2014 e o de 2019 é superior a 200 milhões de reais", informou a UFRJ.

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A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também se manifestou: “Não há eficiência administrativa que supere um corte de tamanho monte, principalmente diante das sucessivas restrições orçamentárias dos últimos anos”, afirmou a reitora Sandra Regina Goulart Almeida, em comunicado. "A medida poderá provocar ainda a descontinuidade de contratos com empresas terceirizadas, o que elevará também mais as aviltantes taxas de desemprego do Estado de Minas Gerais e do país."

Quando em 29 de março, o Governo Federal publicou o decreto Nº 9.741, informando o congelamento de 29,6 bilhões de reais de recursos da União, com o objetivo de adequar as contas à Lei de Responsabilidade Fiscal, e às metas de resultado primário e teto de gastos, não estava claro quais seriam os efeitos práticos dessa medida na área de educação e ciência. Com os cortes, o Ministério das Ciências e Tecnologias (MCTIC) perdeu 41,9% dos recursos. Dos cerca de 5,079 bilhões de reais previstos para o órgão, foram bloqueados 2,132 bilhões de reais. E do orçamento da Educação, de 149 bilhões de reais, 5,8 bilhões em despesas não obrigatórias foram contingenciadas por este decreto.

O Ministério da Economia recuou e descongelou cerca de 3,6 bilhões de reais para atender urgências de cinco ministérios. Pelo decreto, publicado no Diário Oficial, na quinta-feira, 2 de maio, o MCTIC conseguiu recuperar 300 milhões de reais em verbas. Outras pastas que também recuperaram recursos foram Infraestrutura, Desenvolvimento Regional, Cidadania, e Mulher e Direitos Humanos. Mas o MEC sofreu um aperto nas contas de 1,6 bilhão de reais.

O desmonte da ciência nacional é assunto de publicações estrangeiras especializadas como Nature, Science e SciDev.Net

Trabalhar em situação de escassez de recursos, no entanto, sempre foi visto como regra entre pesquisadores  brasileiros, exceção era ter dinheiro. “Terminei meu doutorado e vim para Federal de Goiás, em 1994. Sempre foi difícil. Nunca tivemos muitos recursos”, afirma o professor José Alexandre Felizola Diniz Filho, da Universidade Federal de Goiás (UFG), um dos pioneiros na pesquisa de evolução e ecologia no país.

Os anos de bonança econômica, especialmente no segundo Governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e primeiro Governo de Dilma Rousseff, chegaram a quebrar essa lógica. “A área de ciência e tecnologia cresceu, formamos milhares de doutores. Mas agora entramos em crise econômica novamente”, afirma Diniz.

José Alexandre Felizola Diniz Filho, professor da UFG desde 1994: “Temos um movimento anticiência, paralelo à crise econômica, que é global e está no Brasil”.
José Alexandre Felizola Diniz Filho, professor da UFG desde 1994: “Temos um movimento anticiência, paralelo à crise econômica, que é global e está no Brasil”.UFG

Desta vez, uma movimentação tem preocupado os pesquisadores tanto quanto a falta de recursos. “Temos um movimento anticiência, paralelo à crise econômica, que é global e está no Brasil”, afirma Diniz, que pesquisa evolução e mudança climática, dois temas que estão na pauta de discussão dos criacionistas e negacionistas.

Esther Colombini, professora do Instituto de Computação da Unicamp e diretora de Competições Científicas da Sociedade Brasileira de Computação, também sentiu a mudança de percepção em relação à valorização da educação. “Trabalhamos muito além do nosso expediente normal para alavancar a ciência e inovação – agora somos tratados como o problema e não como o que ainda funciona na esfera pública. Porque é claro que a universidade pública tem problema, mas é de longe uma das poucas coisas que realmente funciona. O que me desanima é as pessoas não enxergarem o que é a universidade, tratando-a como inimiga do povo”.

Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a afirmar que os corte de recursos da ordem de 30% nas universidade federais afetariam instituições com desempenho acadêmico fora do esperado, e estivessem promovendo “balbúrdia”. Dentre as universidades citadas, estavam a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade Federal Fluminense (UFF), cujos estudantes teriam organizado eventos políticos e manifestações partidárias contrárias às ideologias do Governo Federal.

O Ministério da Educação, no entanto, informou por meio de nota que o critério utilizado para o bloqueio de recursos foi "operacional, técnico e isonômico para todas as universidades e institutos", em decorrência do decreto n° 9.741. O MEC disse ainda que estuda aplicar outros critérios como o desempenho acadêmico das universidades e o impacto dos cursos oferecidos no mercado de trabalho para definir o orçamento. "O maior objetivo é gerar profissionais capacitados e preparados para a realidade do país", argumentou a pasta, em nota.

Crise nas universidades

As universidades foram avisadas pelo MEC nesta semana sobre o contingenciamentos. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) informou que, além do bloqueio orçamentário, existe restrição imposta pelo limite de movimentação de empenho, de 90% para as despesas de investimento e de 60% para os recursos de custeio, o que pode afetar inclusive o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que apoia a permanência de estudantes de baixa renda na universidade. "No momento, as atividades não estão diretamente comprometidas e a universidade continuará funcionando. No entanto, serão necessárias ações de contingência", afirmou a Unifesp em nota.

“Claro que a universidade pública tem problema, mas é de longe uma das poucas coisas que funciona no Brasil”, disse Esther Colombini, da Unicamp

Já pesquisadores bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) receberam em 15 de abril um e-mail suspendendo recursos já aprovados. A crise já era vislumbrada desde a definição de orçamento de 2018. O próprio presidente do CNPq à época, Mario Neto Borges, chegou a divulgar uma carta aberta à sociedade alertando dos riscos dos cortes ao desenvolvimento científico do país. “Se, em 2018, o CNPq pôde contar com recursos da ordem de 1,2 bilhão de reais, em 2019 a previsão de 800 milhões de reais poderá limitar ações diversas como o lançamento de editais de pesquisa, contratações de novos projetos e outras iniciativas”, afirmava.

O decreto de Bolsonaro transformou a previsão pessimista do ex-presidente do CNPq em profecia. O órgão não só teve que congelar bolsas já concedidas, como informou que o edital para a chamada universal de 2019, que contempla recursos para pesquisas em diversas área do conhecimento, está suspenso.

O desmonte da ciência nacional acabou virando assuntos de publicações estrangeiras especializadas como Nature, Science e SciDev.Net. E o próprio ministro da pasta, o astronauta Marcos Pontes, veio à público defender o desbloqueio de recursos do orçamento determinado pelo Ministério da Economia. "O orçamento é incoerente com a importância do setor para o desenvolvimento nacional. Recursos para ciência e tecnologia não são gastos, são investimentos. Todos os países desenvolvidos, quando estão em crise, investem mais no setor”, afirmou o ministro, em audiência no Senado.

Pontes trabalha para recompor o orçamento para que todos os compromissos possam ser cumpridos até o final do ano, informou o CNPq em nota. “O Ministério está empenhado nesse esforço junto às áreas competentes do Governo Federal.” Já obteve uma vitória, com o descongelamento parcial de verbas. Paralelamente, seu colega da pasta da educação, Abraham Weintraub, lida com uma crise particular ao ter seu histórico escolar completo do curso de Economia na Universidade de São Paulo (USP) —que inclui disciplinas em que foi reprovado— vazado nas redes sociais vazado. Para responder à violação de sua privacidade, Weintraub divulgou um vídeo nas redes em que justificava as baixas notas por problemas pessoais ocorrido em seus primeiros anos como estudante. Nada sobre a crise no orçamento.

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