Os caminhoneiros não conseguem mais carregar metade do Brasil na carreta
Desiludidos com o Governo Bolsonaro, motoristas responsáveis por 60% do transporte de cargas no país fazem nova paralisação contra a alta dos combustíveis. Um deles, Marcelo Paz, relata ao EL PAÍS os custos e as dificuldades da categoria
O caminhão é a principal ferramenta de trabalho de Marcelo Aparecido Santos da Paz, de 36 anos, mas hoje seu veículo está parado em casa, em Santos (SP). “Está inviável trabalhar”, resume o caminhoneiro, que decidiu aderir à greve de profissionais autônomos marcada para começar nesta segunda-feira, 1º de novembro. A constante alta no preço dos combustíveis e a incapacidade do Governo Jair Bolsonaro de amortizar seus impactos motivaram a paralisação de uma categoria que, hoje, tem dificuldades para escoar mais da metade (cerca de 60%) da carga transportada no Brasil. As negociações com o Governo federal, sobretudo com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, têm gerado poucos frutos. ‘’Eu votei em Bolsonaro e pode-se dizer que os caminhoneiros são base do Governo, porque mais de 90% votaram nele. Estamos há três anos conversando sobre nossas demandas, mas o que nos prejudica está sendo levado pra frente”, explica Marcelo. “Com certeza existe muita decepção com o Governo”.
Marcelo possui uma carreta de 12 metros com dois tanques de combustível que somam 700 litros. Na viagem que fez de Santos para Recife há 15 dias, para transportar containers vazios, ele recebeu de uma transportadora 19.000 reais —13.000 reais para ir e 6.000 reais para voltar. Parece um valor alto, mas só na ida ele gastou cerca de 6.000 reais para abastecer duas vezes seu veículo com diesel. Na volta, foram outros 6.000 reais. “Hoje, no meio do caminho, o combustível muda de preço e pagamos mais caro”, explica. Além desses 12.000 reais só em combustível, ele gastou mais de 3.000 reais em pedágios, alimentação e hospedagem, entre outros custos. “E graças a Deus não tive que fazer qualquer tipo de manutenção [no veículo].”
No final de 15 dias de trabalho, sobraram pouco mais de 3.000 reais, valor insuficiente para bancar seus gastos. O certo, diz, é que sobrasse pelo menos de 8.000 reais a 10.000 reais. “Eu pago, todo mês, 3.000 reais de prestação do caminhão, mais 1.000 reais de prestação da carreta, mais 380 reais de sistema de rastreamento, mais 1.100 reais de seguro”, explica. Ou seja, o custo mensal de sua ferramenta de trabalho é de, no mínimo, 5.500 reais mensais. Isso quando não há gastos extras com trocas de pneu ou troca de óleo completa. “Há seis meses paguei 900 reais para fazer uma troca dessa. Há um mês, paguei 2.000 reais”, explica. Além desses custos, com os quais ele arca sozinho, Marcelo ainda sustenta sua esposa e quatro filhos. “Estamos todos os caminhoneiros na mesma situação, enrolados no cartão de crédito e devendo para banco. Todo mundo está trabalhando dessa forma”, conta.
A paralisação se tornou uma saída para uma categoria da qual o Brasil inteiro depende —ao menos desde que, em meados dos anos de 1950, o país fez a opção pelo modal rodoviário para escoar sua produção. A dependência ficou bastante evidente em maio de 2018, quando o país parou por causa de uma greve da categoria. No centro da discussão naquele ano, como agora, estava a política de preços da Petrobras, a PPI (paridade de importação), que reajusta o valor dos combustíveis com base na cotação internacional em dólar —cujo valor, no Brasil, não para de subir. Em 2018 foi acordado com o Governo Michel Temer uma tabela com valores mínimos de frete, mas a medida foi parar no Supremo. “Naquela paralisação, o caminhoneiro ganhou, mas não levou”, explica Luciano Santos, de 37 anos, presidente do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens da Baixada Santista. “Se você entra num táxi hoje, você já paga mesmo sem rodar. No Uber, se chover o valor é um; se fizer sol, o valor é outro; e se a demanda por viagens aumenta, também muda o valor. O povo brasileiro tem um tabelamento, que é o salário mínimo. Por que o caminhoneiro não tem?”, questiona.
Além do tabelamento, os caminhoneiros demandam uma política de preço de paridade de exportação (PPE), baseada nos custos nacionais, além da estabilidade dos preços por ao menos um trimestre —algo que, segundo argumentam, seria possível através da criação de um fundo pela Petrobras. Outra questão sobre a mesa é o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) cobrado pelos Estados nas vendas de combustíveis. Na sexta-feira, foi acordado o congelamento do imposto por ao menos 90 dias.
Negociações
Existe uma insatisfação geral dos caminhoneiros com o Governo, sobretudo com o ministro Tarcísio Freitas, que na última semana sugeriu que os profissionais deveriam repassar o aumento dos preços para o frete. Um vídeo do ministro que circula entre os caminhoneiros causou especial irritação. Nele, o titular da pasta de Infraestrutura afirma que a chance de greve é “zero, nenhuma”, porque, ao contrário de 2018, não existiria agora o apoio de empresas de transporte. O ministro também teria dito que os caminhoneiros que não conseguem tirar seu sustento devem buscar outra ocupação. “Eu sou bolsonarista, só que não posso fechar os olhos para o que está acontecendo. Ele [o presidente] pegou um país para administrar, a gente confiou, e um bom administrador tem que fazer administração, não sair vendendo tudo”, argumenta Luciano, sobre a fala em que Bolsonaro defende privatizar a petroleira. “Existe uma tristeza [da categoria] com o presidente, que ele pode consertar, só depende dele. Decepção mesmo existe com Tarcísio”, complementa.
Para o deputado Nereu Crispim (PSL-RS), presidente da Frente Parlamentar Mista dos Caminhoneiros Autônomos e Celetistas, o ministro Tarcísio de Freitas “empurrou dois anos e meio com a barriga e não resolveu nada”. O representante do Governo Bolsonaro convocou lideranças para reuniões na última semana, mas muitas decidiram não comparecer, e os encontros acabaram esvaziados, lembra Crispim. A gestão bolsonarista considera conceder uma ajuda de 400 reais para os profissionais autônomos. “Pegou muito mal, é visto como esmola”, afirma o parlamentar, que vê a paralisação como inevitável e a encara como sinal de que as negociações fracassaram.
Já o sindicalista Norival de Almeida Silva, presidente da Fetrabens-SP e da Sindicam-SP, as principais entidades do Estado de São Paulo da categoria, afirma que irá respeitar e apoiar os associados que aderirem à greve, mas que não dará seu apoio institucional. Para ele, o problema maior não é o preço do diesel, mas o valor do frete cobrado pelos caminhoneiros. “A pauta deve ser única: ‘eu quero receber pelo trabalho que eu faço. Não quero pagar para trabalhar’”, afirma Norival, crítico de uma negociação que envolve múltiplas pautas. Ele diz, por exemplo, que o piso mínimo do frete acordado em 2018 já não paga os custos do profissional. “O caminhoneiro tem que discutir política na hora de votar, mas só política, não deve misturar o trabalho dele com isso. Nossa categoria vem sendo sendo usada”, critica o sindicalista, que também classifica a proposta do Governo de dar um auxílio de 400 reais como “esmola eleitoreira”.
O caminhoneiro Marcelo também rejeita essa ideia do Governo. Admite, assim como Norival, que boa parte do dinheiro pago em frente fica com as empresas transportadoras, que funcionam como intermediárias entre os motoristas autônomos e o dono da carga. “Poderiam pagar um frete justo, só que não pagam”, explica. Por que, então, não buscar outra ocupação? Ele também rechaça essa ideia. Seu desejo é apenas o de tirar seu sustento com o que escolheu fazer. “Meu pai foi caminhoneiro por 40 anos, fui criado por uma pessoa que manteve sua família em cima do caminhão. Há 16 anos trabalho com isso, e só com isso”, explica ele, para quem a vida na estrada só faz sentido por gostar de sua profissão. “Tem pessoas há 30 ou 40 anos em cima do caminhão, uns coroas com 70 anos e ainda trabalhando. Essas pessoas vão fazer o quê? Somos mais de um milhão caminhoneiros autônomos. A gente não tem opção a não ser trabalhar com isso.”
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