Empresas de segurança ‘perderam’, em média, 7 armas por dia nos últimos 5 anos

Dados obtidos pelo EL PAÍS com a agência de dados Fiquem Sabendo apontam que 12.000 armas usadas pelo setor privado sumiram no período e podem ter acabado nas ruas de maneira irregular

Armas entregues em campanha de desarmamento.Giuseppe Bizzarri (Folhapress)
Rio de Janeiro -
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Nos últimos cinco anos, 12.000 armas de fogo usadas originalmente por empresas de segurança foram perdidas no Brasil. Isso significa que uma média de sete armas desapareceram por dia e, provavelmente, acabaram nas ruas de maneira irregular, segundo números obtidos pelo EL PAÍS com a agência de dados Fiquem Sabendo. A quantia, entretanto, pode ser ainda maior, já que especialistas apontam que há subnotificação. Questionada pela reportagem, a Polícia Federal, responsável por controlar o setor, não respondeu quantas delas foram recuperadas nem quais os resultados das investigações desses sumiços.

Para Ivan Marques, presidente da Control Arms, coalizão internacional de organizações ligadas ao tratado de Genebra sobre comércio de armas, o extravio de armas de empresas de segurança precisa ser mais bem investigado, especialmente quando há suspeita de padrão ou repetição de sumiço na mesma empresa. Mas o que acontece é que estas perdas são registradas nas polícias civis isoladamente e raramente são investigadas. “É inadmissível que uma empresa que tenha autorização para operar e estocar grandes quantidades de armas de fogo e munição perca esse material nessa quantidade e nessa frequência. A reiterada perda de armas por vigilantes, negligência no controle de arsenais ou seu manejo precário na ocasião de falências dessas empresas tem sido recorrente no Brasil, criando um canal direto de migração de armas legais ao mercado ilegal”, explicou. Atualmente, existem 246.511 armamentos nas mãos de funcionários de 3.603 empresas de segurança no país.

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A falta de controle de armamentos e munições é um problema crônico no Brasil, onde 8 em cada 10 brasileiros são assassinados com o emprego de armas de fogo. Na maioria dos casos, não é possível saber quem é o autor do crime e nem mesmo quantos assassinatos acabaram elucidados, já que apenas 10 Estados levantam estes dados. Dentre estes 10, só é possível saber o autor do crime em apenas um terço das mortes.

O quadro é ainda pior no Rio de Janeiro, onde só se descobre o autor do crime em 11% dos assassinatos —o pior índice do país. É também no Estado em que se apreende mais armas: uma por hora na última década, sendo 41% delas de fabricação nacional. Não por acaso, o Rio já realizou duas CPIs para apurar como se chegou a essa situação. A segunda delas, em 2015, concluiu que a principal fonte de desvio de armas no Estado eram as empresas de segurança privada. De acordo com material enviado pela Polícia Federal à Comissão, 17.662 armas foram roubadas, furtadas ou perdidas entre 2006 e 2015, o que equivalia, à época, a um terço das armas das empresas. Ao encerrar os trabalhos da CPI, o relator, deputado estadual Carlos Minc, disse que “são armas que vão parar nas mãos de criminosos, com algumas dessas firmas de segurança privada parecendo ser fachadas do tráfico de armas”. Cinco anos depois, o problema persiste. De 2017 pra cá, mais de 500 armas desapareceram dos arsenais das empresas no Estado.

“Estes problemas já foram mapeados e as soluções apontadas. As medidas de controle precisam ser fortalecidas. Mas com Jair Bolsonaro, o pouco que se fez, caiu por terra”, explica Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembrando que quando se fala de empresas de segurança a questão é particularmente grave. “Na verdade, nem a PF sabe o real cenário sobre as armas destas empresas, já que muitas vezes estes roubos, furtos e desaparecimentos de armas não são devidamente comunicados”. Isabel lembra de casos onde, ao fazer pesquisa e rastrear armas apreendidas, identificou algumas que constavam ainda como na posse do proprietário. “O controle é mínimo. Não há uma lógica de política pública que prioriza o assunto”, pontua.

Este número era muito maior. Há 15 anos, houve em Brasília a CPI do Tráfico de Armas. Durante os trabalhos se identificou que só em 1999, foram desviadas cerca de 10.000 armas das empresas de segurança privada do Rio de Janeiro. O relatório da CPI pontua, porém, o Estatuto do Desarmamento como marco para o controle dessas armas, já que responsabiliza o proprietário da empresa por esses desvios. O Estatuto, alvo de constantes críticas de Bolsonaro, foi promulgado em 2003 e a CPI ocorreu três anos depois, o que pode explicar a queda no número do sumiço de armamentos das empresas.

Por outro lado, as punições parecem leves. Segundo os dados do Fiquem Sabendo obtidos pelo EL PAÍS, em cinco anos foram instaurados 23.283 processos para investigar o que aconteceu com estas armas que foram roubadas, extraviadas ou perdidas. A imensa maioria das sanções terminou em multas e advertências. Houve 516 cancelamentos de licença e 4.829 processos foram arquivados. Porém, para Isabel Figueiredo, o que está previsto em lei para punição é o suficiente. O que falta é uma fiscalização eficaz. “Não é só instaurar o processo. É preciso pesar a mão na sanção. Quando a gente fala de empresa de segurança, falamos também de empresas que não são sérias e negociam armas, são laranjas e alimentam esse mercado”, diz ela, que lembra que a falta de transparência no setor impede um melhor controle e a falta de prevenção agrava a situação.

A própria Polícia Federal, responsável por regular e investigar os sumiços de armas, teve mais de 400 armas extraviadas em pouco mais de 11 anos, em todo o país. Cerca de 20% delas desapareceu dos estoques da Superintendência do Rio. A PF de São Paulo aparece em segundo lugar no ranking, seguido do Distrito Federal e Pará.

“É como se de alguma forma tivéssemos uma parte do sistema de segurança que se acomodou no discurso de que as armas entram pelas fronteiras, contrabandeadas, e se esquecem que isso não é verdade”, pontua Isabel, ao lembrar dos resultados das CPIs e pesquisas, que apontam que cerca de 40% das armas apreendidas pelas polícias são de origem legal e produzidas no Brasil.

Também foram extraviadas munições. Em 2018, balas compradas pela Polícia Federal e que desapareceram dos paióis da instituição, foram usadas para executar a vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Passados mais de três anos, o crime segue sem solução.

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