Supremo julga o futuro das terras indígenas no Brasil

Julgamento volta à corte, mas a decisão final sobre o marco temporal, que institui que etnias só podem reivindicar territórios que já ocupavam antes da Constituição de 88, pode ficar nas mãos do Congresso

Indígenas acampados em Brasília assistem à sessão do Supremo na quarta-feira da semana passada, quando a discussão foi adiada para esta semana.Joédson Alves (EFE)
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O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira o julgamento que pode definir o futuro das demarcações indígenas no país. Os ministros decidirão se acatam ou não a tese do marco temporal, defendida por ruralistas críticos da política indigenista, que afirma que só poderão ser consideradas terras indígenas aquelas ocupadas ou reivindicadas por eles até a promulgação da Constituição de 1988. O relator da ação, o ministro Edson Fachin, já votou a favor dos indígenas, mas agora existe a possibilidade de o julgamento ser suspenso, por meio de um pedido de vistas. Isso faria com que ficasse nas mãos do Congresso a decisão de votar um projeto de lei que insere a tese do marco na legislação. Diante de um Parlamento que concentra quase a metade dos deputados (241) e senadores (39) na banca ruralista, o adiamento seria considerado uma derrota pelos indígenas, que acampam em Brasília desde o início da semana passada para reivindicar seus direitos.

A tese do marco temporal é polêmica porque a Constituição não define uma data específica de ocupação a ser considerada nas demarcações. O artigo 231 da Carta diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. No entanto, a Constituição foi promulgada logo após o fim da ditadura no país, época em que vigorou a política de integração, que afirmava que os os indígenas deveriam se integrar à sociedade dos não-indígenas. Durante a ditadura, muitos grupos foram expulsos das terras que tradicionalmente ocupavam, que posteriormente foram vendidas pelo próprio Estado ou ocupadas por grileiros. “Quem tem uma prova de onde estava em 5 de outubro de 1988?”, diz Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). “Isso é uma grande arbitrariedade porque subverte a lógica dos direitos originários dos povos indígenas”.

Até a promulgação da Carta, os indígenas eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente por seus direitos. Atualmente, os povos originários podem reivindicar uma terra ocupada por terceiros para a demarcação desde que comprovem que aquele local era ocupado por seus ancestrais. O processo de demarcação envolve uma extensa pesquisa antropológica que aponta se havia, de fato, no local membros daquela etnia que foram expulsos. Mas como nos últimos anos as demarcações têm demorado para serem realizadas —durante o Governo Bolsonaro, por exemplo, nenhuma terra foi demarcada— muitos grupos iniciaram a retomada dessas terras. Em muitos casos, esse processo gera conflitos e leva a morte de indígenas. Dados do Atlas da Violência, divulgados nesta terça-feira, sintetizam um cenário preocupante: Entre 2009 e 2019, a taxa de assassinato de indígenas aumentou em mais de 20%, enquanto a de homicídios em geral caiu. No período, um índio foi assassinado a cada dois dias no país.

A tese do marco temporal foi acolhida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em 2013. Na época, a corte confirmou a decisão da Justiça de Santa Catarina de 2009 que concedeu ao Governo daquele Estado a reintegração de posse de uma área localizada em parte da reserva indígena Ibirama-Laklãnõ. Ali vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang. A Fundação Nacional do Índio (Funai) recorreu à decisão e ela foi parar no Supremo.

A ação ficou ainda mais importante depois que, em 2019, ganhou status de repercussão geral. Isso significa que a decisão tomada pelos ministros agora servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios. Sob um Governo que tem manobrado para travar as demarcações de terra, e um Congresso que tem colocado em votação projetos de lei que fragilizam a blindagem dos territórios indígenas, o tema se torna ainda mais delicado.

Influência na Câmara

Caso o Supremo confirme a tese do marco temporal, a ação também exercerá influência sobre projetos em tramitação no Congresso. Em especial, o Projeto de Lei 490/2007, que trata do marco temporal, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e ainda permite a exploração de territórios indígenas por garimpeiros. O PL, que já passou pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara no início de julho e aguarda para ser votado no Plenário, também flexibiliza o contato com povos isolados —antes da Constituição, a política do estado brasileiro era a de ir atrás desses povos para integrá-los, o que acabou dizimando diversas etnias por doenças para as quais eles não tinham imunidade.

Julia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas, alerta que propostas como essa passam a ser constitucionais uma vez que o Supremo acate a tese do marco temporal. “Isso corrobora para inviabilizar demarcações, aumentar a violência em terras indígenas e ameaçar os territórios já homologados”, afirma ela. A Conectas é amicus curiae nesta ação no Supremo, ou seja, é uma das entidades que subsidia a corte com informações para o julgamento.

De acordo com a Funai, existem hoje 680 processos demarcatórios de terras indígenas. Desses, 443 são de territórios já homologados (ou seja, áreas com seus limites definidos, materializados e georreferenciados, cuja demarcação administrativa foi acatada por decreto presidencial), ou regularizados (terras que, após o decreto de homologação, foram registradas em cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União). O restante, 237 processos, tratam de áreas reivindicada pelos indígenas, mas com processo ainda não finalizado —estão em estudo ou delimitação.

Julia Neiva alerta, no entanto, que, caso a tese do marco temporal seja acatada pelo Supremo, mesmo as terras já demarcadas e homologadas podem entrar em risco. “Se a tese for adotada, podemos dizer que ela pode gerar uma insegurança jurídica, vai aumentar a quantidade de casos questionando terras já demarcadas”, afirma.

A tese do marco temporal é defendida por ruralistas, que afirmam que é preciso criar segurança jurídica para quem detém a posse de terra e pagou por ela. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), associação de deputados e senadores de vários partidos aliados aos interesses do agronegócio, defende que a ausência do marco temporal pode afetar a agricultura em todo o país. E estima um prejuízo para o setor de “1,5 milhão de empregos, 364,59 bilhões de reais em produtos agrícolas não produzidos no país, e 42,73 bilhões de dólares em exportações agrícolas não geradas”, caso o marco temporal seja estabelecido.

Mas a advogada Juliana de Paula rebate que essa é uma equação que tem muitos fatores. “Ninguém calcula os bilhões que serão perdidos em armazenamento de carbono, em regime de chuva, em biodiversidade [caso o marco temporal seja aprovado]”, diz, em referência ao fato de que terras indígenas costumam ter menos desmatamento. “Tem muitos fatores que devem ser colocados nessa equação”.

O EL PAÍS entrou em contato com a FPA por meio de sua assessoria de imprensa, mas até a conclusão desta reportagem o pedido de entrevista ainda não havia sido agendado. Por meio de nota, a entidade afirma que não é contra a demarcação de terras. “Defendemos o direito de propriedade e a indenização justa aos proprietários rurais que tenham suas terras demarcadas, além da segurança jurídica como fonte de credibilidade na atração de investimentos e do desenvolvimento brasileiro”, afirmam. A FPA também lembra que “14,1% do território nacional é ocupado por indígenas”. No entanto, mais de 98% da extensão total dessas áreas está na Amazônia Legal, grande parte em regiões remotas e sem vocação agrícola ou pecuária.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), 41% de todo o território brasileiro em 2017 era ocupado por estabelecimentos rurais privados. Juliana de Paula lembra ainda que atualmente existem 51 milhões de hectares de terras públicas não destinadas no país. Ou seja, regiões ocupadas principalmente por florestas, pertencentes aos Estados e à União, e que ainda não foram destinadas à utilização pela sociedade. “São mais de dois Estados de São Paulo de áreas cada vez mais invadidas, porque sabem que o Congresso Nacional vai legalizar depois”, diz ela.

“A gente não tem falta de terras no Brasil. Existem muitas posses e ocupações ilegais e esse problema precisa ser resolvido”, afirma Juliana. “É uma falácia dizer que [sem o marco temporal] alguém vai sair perdendo. Até porque, se os indígenas perdem, eles pedem a possibilidade de existir como pessoa. O produtor, se for removido não vai se perder”.

Histórico

O marco temporal já foi um tema debatido no STF. Em 2009, os ministros analisaram a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, palco de disputa desde a década de 70, e deram uma decisão a favor dos indígenas com base no marco temporal. Na ocasião, o Supremo decidiu que os indígenas tinham direito ao espaço porque já estavam ali antes da promulgação da Constituição e confirmou a homologação da reserva. Ficou estabelecido, no entanto, que o entendimento sobre o marco temporal só valeria para aquela terra. Mas a decisão acabou abrindo precedente para que outros casos fossem julgados com base no mesmo entendimento.

Para reforçar esse precedente, em 2017, no Governo Michel Temer, a Advocacia-Geral da União (AGU) editou um documento instituindo que indígenas têm direito à terra, “desde que a área pretendida estivesse ocupada na data da promulgação da Constituição Federal”. O caso da comunidade indígena Xokleng, de Santa Catarina, que está nas mãos do Supremo, foi julgado no TRF-4 com base nesse entendimento. Mas em maio do ano passado, o ministro do STF, Edson Fachin, suspendeu esse parecer da AGU até o final da pandemia ou até que o julgamento da ação seja encerrado. No entendimento do ministro, a tramitação de processos que podem ter como finalidade reintegrações de posses são capazes de colocar em risco populações indígenas “que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”.

Fachin, que é relator da ação, já apresentou seu voto em junho, no plenário virtual, contra o marco temporal. Em seguida, o caso foi remetido ao plenário físico a pedido do ministro Alexandre de Moraes. No mesmo mês, a Procuradoria-Geral da República (PGR) também apresentou parecer contra o marco temporal. “O art. 231 da Constituição Federal reconhece aos índios direitos originários sobre as terras de ocupação tradicional, cuja identificação e delimitação há de ser feita à luz da legislação vigente à época da ocupação”, escreveu o procurador-geral da República, Augusto Aras.

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