Os milhões do “orçamento secreto” para a pequena Paraíso do Tocantins azeitam a engrenagem que blinda Bolsonaro
Cidade anunciou chegada de dinheiro de emenda do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do Governo no Congresso, via Codevasf, no início da semana, mas obras não tem projeto, edital nem licitação prontos. No Estado, político é citado em inaugurações e entregas de maquinário
“Há tempos estamos lutando por esta verba em Brasília e aqui ressaltamos o importante papel desempenhado pelo senador Eduardo Gomes (MDB)”, agradeceu Celso Morais, prefeito emedebista de Paraíso do Tocantins, cidade de 51.000 habitantes localizada a 63 quilômetros da capital Palmas, ao anunciar a chegada de 38 milhões de reais para o município, na segunda-feira passada. Estava ao lado de representantes da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco (Codevasf), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional e Urbano. “A equipe técnica já está em campo fazendo os levantamentos necessários para que a obra seja licitada e venha a ser executada o mais breve possível no município”, disse o prefeito. Morais também agradeceu ao deputado federal Carlos Henrique Gaguim (DEM-TO) pela ajuda durante a cerimônia de entrega simbólica do dinheiro —que só foi possível depois de uma emenda do senador, líder do Governo do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. A verba para Paraíso do Tocantins vem do que ficou conhecido como orçamento secreto, um mecanismo para repassar recursos federais a bases eleitorais de aliados na Câmara dos Deputados e no Senado sem regras ou supervisão popular em um valor total de pelo menos 3 bilhões de reais.
O escândalo, também chamado de “bolsolão” ou de “tratoraço”, foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A destinação do dinheiro não ocorreu pelo caminho mais natural: as emendas parlamentares tradicionais, a que todos os parlamentares tem direito no orçamento que é votado todos os anos, são públicas e possuem os recursos fiscalizados pelos órgãos de controle, o que permite uma maior transparência do dinheiro. Ocorreu por um mecanismo criado pelo Congresso, batizado de emenda do relator, que corre de maneira legal mas extraoficial. Só quem tem o controle das emendas e seus valores é o Palácio do Planalto e os congressistas envolvidos na negociação. Elas não são descriminadas em nenhum lugar, não tem seu vínculo com os parlamentares que as indicaram registrado oficialmente e, assim, essa relação não passa por escrutínio público ou de órgãos de controle como o TCU. Também não há limite claro para o montante que cada parlamentar pode destinar. Na reportagem, o jornal teve acesso a pelo menos 101 ofícios entregues por esses deputados e senadores, a maioria do chamado Centrão, que garante a sustentação política de Bolsonaro, ao Ministério do Desenvolvimento Regional ou diretamente à Codevasf. Outros pedidos de verba foram feitos verbalmente. O rastro do dinheiro, desta forma, ficou longe dos olhos públicos e só foi possível conhecê-lo graças ao esforço de reportagem. Além de destinar verbas apenas para políticos aliados, o que fere o princípio da distribuição equânime de emendas parlamentares, o mecanismo permitiu que os beneficiados extrapolassem o limite de 16 milhões por ano e emendas individuais cada um.
De acordo com o Estado de S. Paulo, parte do dinheiro foi destinada à compra de tratores e de outras máquinas pesadas, mas obras de infraestrutura país afora também foram contempladas. Partidos de esquerda como PT, PSB, PSOL, PCdoB, PDT e REDE, que fazem oposição ao presidente no Congresso, além do direitista NOVO, apresentaram três pedidos de investigação do caso ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Ministério Público Federal. O subprocurador-geral junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, também pediu que o tribunal investigue as denúncias feitas pelo jornal. O próprio TCU já havia aberto um procedimento no início do ano após levantar indícios de irregularidades em pregões eletrônicos promovidos pela Codevasf em obras contempladas pelo dinheiro do orçamento secreto.
Em um passeio por sites e páginas em redes sociais de prefeituras, Governos do Estado, jornais e blogs locais país afora, é possível ver o resultado prático desse arranjo. Prefeitos e governadores inauguram obras e recebem equipamentos vistosos com os recursos conseguidos com a ajuda de aliados e padrinhos políticos em Brasília. Em troca, oferecem agradecimentos efusivos, recebem com festa os parlamentares que enviaram as benfeitorias, e apoiam suas campanhas, oferecendo palanques. Com isso, o parlamentar reforça sua base eleitoral para a próxima eleição. E assim a engrenagem do poder se mantém: o presidente que autorizou o envio da verba consegue apoio no Congresso para aprovar seus projetos e evitar crises políticas que podem levar até a um impeachment —Bolsonaro tem dezenas de pedidos a espera de uma autorização do presidente da Câmara, Arthur Lira, também contemplado por verbas do orçamento secreto. Independentemente de qualquer suspeita de desvio ou corrupção, é um arranjo que vale a pena para todos os envolvidos.
Uma mãozinha para Paraíso do Tocantins
As obras previstas em Paraíso do Tocantins com a verba obtida via orçamento secreto ―pavimentação asfáltica, recapeamento, drenagem e sinalização de vias públicas em seis bairros― não têm projeto, edital nem licitação prontos. Isso apesar de ser uma demanda antiga da cidade (era pleiteada pelo menos desde 2019) e o dinheiro em questão já estar liberado e ser parte de um convênio assinado desde dezembro com o Codevasf. “A Codevasf celebrou com o município convênio cujo plano de trabalho encontra-se em fase de elaboração”, afirma a assessoria de imprensa da companhia ao EL PAÍS. “A seleção da empresa que realizará os serviços ocorrerá por meio de processo licitatório, a ser organizado pelo município”, segue a nota, que explicita que a companhia recebeu os recursos por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) nº 138/2020, do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Para conseguir os recursos, Eduardo Gomes não enviou ofícios ao Ministério do Desenvolvimento Regional ou à Codevasf, como algum dos colegas parlamentares que usaram recursos do orçamento secreto. Foi diretamente à sede da companhia em Brasília, com o prefeito Morais, no dia 3 de maio, conforme documentou a assessoria de imprensa do prefeito e a imprensa local. A pauta da reunião com Marcelo Moreira, presidente da Codevasf, era a liberação do dinheiro. Também participaram da reunião o deputado federal Carlos Gaguim (DEM) e a secretária de infraestrutura do Tocantins, Juliana Passarim. Uma semana depois, o prefeito anunciou a chegada do dinheiro e disse que os projetos estão em fase final de elaboração.
Segundo a assessoria de imprensa do senador Eduardo Gomes, o valor total da emenda destinada por ele via Codevasf a Paraíso é de “40 milhões de reais com valor líquido de 38 milhões, repassados por convênio da Codevasf com execução da Prefeitura municipal, para asfaltamento na cidade de Paraíso”. De acordo com a assessoria, não há nada de secreto ou incomum na forma que o repasse foi feito ao município, já que o montante sai do Orçamento Geral da União aprovado no Congresso.
Em Tocantins, o nome do senador na entrega de obras e equipamentos milionários tem sido uma constante nos últimos tempos. Em dezembro, Gomes anunciou ao lado do governador, Mauro Carlesse, a liberação de 30 milhões para o projeto de irrigação do Rio Formoso. “Quero agradecer ao presidente Jair Bolsonaro”, afirmou ele ao jornal Gazeta do Cerrado. “Só na primeira etapa são 150 milhões, 30 milhões já foram liberados. É o começo de um grande ciclo de obras”, disse. O dinheiro saiu da Codevasf. Em outra entrevista ao mesmo jornal, anunciou mais três projetos de asfaltamento de vias no Estado: 5 milhões para o município de Araguatins, 2,5 milhões para Sítio Novo e 2,5 milhões para Arapoema. A reportagem contou outros 86 milhões de reais da Codevasf em quatro projetos ou entregas de máquinas anunciados sem a participação ou menção ao senador Tocantins afora do ano passado para cá.
O ex-deputado federal Homero Barreto, chefe do recém-criado escritório da Codevasf no Tocantins, no início do ano passado com um orçamento de cerca de 200 milhões de reais, é uma indicação do Centrão, no geral, e do senador, em particular. A região hidrográfica dos rios Tocantins-Araguaia foi incluída na área de atuação da Codevasf por meio uma lei, em agosto de 2018. Atualmente, a área de atuação da empresa abrange 27% do território nacional, em 12 Estados e no Distrito Federal. Isso corresponde a 1.641 municípios.
“O que seria destinado por critérios técnicos passou a obedecer interesses políticos paroquiais sem transparência, pois apenas os ministérios sabem quem indicou o que, para onde, com qual valor... É um mensalão disfarçado de emendas parlamentares, compra explícita de apoio político”, afirma Gil Castello Branco, da Associação Contas Abertas. “Em plena pandemia, sem recursos para Universidades, pesquisas, Ciência e Tecnologia e tudo o mais, alguns parlamentares selecionados conseguem 3 bilhões de reais para asfaltamento, calçadas, caminhões, tratores, escavadeiras, tá muito errado. Por coincidência, 3 bilhões era, por exemplo, o valor necessário para o Censo Demográfico desse ano, que foi cancelado.”
A reportagem procurou o prefeito de Paraíso do Tocantins e não obteve retorno.
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