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O novo surto de covid-19 sem mortes ou internações em um lar de idosos de Minas Gerais após a vacinação

Lar São Vicente de Paulo, a única casa de repouso para idosos em Ouro Preto, perdeu um quinto dos seus residentes no ano passado por causa do coronavírus. Instituição passou recentemente por um novo surto menor, sem internações e óbitos

Lar São Vicente de Paula, em Ouro Preto, vive novo surto de covid-19.
Lar São Vicente de Paula, em Ouro Preto, vive novo surto de covid-19.Divulgação

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Todos os dias, Analúcia Esteves dos Santos, de 74 anos, acorda cedinho, toma um banho na suíte que divide com outras três idosas e prepara-se para rezar. Ora por proteção e saúde para as duas filhas e para os amigos que fez desde que foi morar na única casa de repouso para idosos na cidade mineira de Ouro Preto, a mais de 90 quilômetros de Belo Horizonte, cinco anos atrás. Ela tenta se ancorar na fé para aplacar a solidão e o medo trazidos pela pandemia e potencializados pelo primeiro surto de covid-19 no Lar São Vicente de Paulo, entre julho e setembro do ano passado. Treze dos 58 residentes faleceram pela doença. “Perdi vários amigos. Aqui todos nós ficamos amigos, então é difícil né? A gente quer ter uma proteção que não existe. Acho que só Deus dá, por isso eu rezo”, diz. Ali, os idosos viam seus companheiros saírem para o hospital quando o fôlego lhes faltava, e o noticiário na televisão os lembrava diariamente que eles integravam o grupo mais vulnerável ao vírus: pela idade e pelas comorbidades da maioria. Neste ano, enquanto a pandemia avançava descontroladamente no país e atingia com força até mesmo os mais jovens, o Lar São Vicente de Paulo viu um novo surto se desenhar. Mas uma gota de esperança havia chegado um pouco antes: a vacinação.

Lá, onde mais de 80% dos moradores já haviam sido acometidos pela doença, dois funcionários e uma residente foram diagnosticados com o coronavírus no último mês de março, até agora o mais letal da pandemia no país. Ninguém precisou ser internado. “É considerado um surto porque instituições de longa permanência são diferentes de outros espaços. Depois do primeiro caso, o controle lá é difícil porque é um espaço de convivência coletiva e o vírus é extremamente contagioso”, explica a assistente social Aline Testasicca, que trabalha no Lar São Vicente de Paulo desde 2019. Os funcionários foram afastados temporariamente e a idosa, assim como suas duas companheiras de quarto, foram levadas para as alas de quarentena. “Isolamos e conseguimos controlar. Estamos vendo que a incidência da reinfecção ainda é pequena, Mas estamos fazendo de tudo para que a gente não vivencie um surto como o do ano passado novamente”, diz Testasicca. Na Espanha, a vacinação reduziu em 99,7% os falecimentos e em 98% os contágios por coronavírus nas residências de idosos desde o final de janeiro.

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O medo então diminuiu, embora de alguma forma o receio permaneça feito uma cicatriz. “Fiquei com medo, mas aqui cuidam da gente da melhor maneira possível e nos orientam. Acho que hoje tenho mais fé do que medo”, diz Analúcia. Ela e suas três companheiras de quarto estão entre os 10 únicos residentes do Lar São Vicente de Paulo que ainda não contraíram a doença, mas todos receberam a primeira dose da vacina Coronavac em janeiro e a segunda em fevereiro. A vacinação trouxe um alívio, mas não permitiu relaxar os cuidados. As visitas, momento em que Analúcia adorava conversar com quem aparecia ali, seguem suspensas há mais de um ano. “Aqui todo mundo me conhece e quando chegava, já me procurava”, orgulha-se. “Eu sinto por não ter muito contato com as minhas filhas. Uma mora no Rio de Janeiro e outra em São Paulo.”

Criada “sem ter de se preocupar em fazer só o que permitiam”, Analúcia viu a pandemia impor mudanças à sua casa e à sua rotina. “Estamos sem liberdade para sair. Fora do portão a gente sabe que pode se contaminar e trazer aqui pra dentro. Aqui temos alguma segurança”, diz. A casa de repouso concentra 16,8% das 77 mortes registradas em Ouro Preto durante toda a pandemia. A cidade, que já conta 3.787 casos, está com 90% dos leitos hospitalares ocupados. Desde o primeiro surto, o casarão de paredes brancas e portas azuis onde funciona o São Vicente de Paulo precisou ser adaptado. O anexo, antes alugado para o funcionamento de um comércio, foi devolvido após uma ação de despejo e deu espaço às alas de quarentena. Elas são divididas por gênero e por confirmação ou apenas suspeita de covid-19. É nesta última ala que ficam, por exemplo, os idosos que eventualmente precisaram se internar no hospital por qualquer outra doença. Só depois de 14 dias de isolamento eles voltam ao convívio coletivo.

Depois de uma ação civil pública do Ministério Público de Minas Gerais em agosto do ano passado, a Prefeitura de Ouro Preto iniciou um rastreio preventivo semanal na instituição, com a realização de testes RT-PCR nos funcionários e residentes. Foi assim que o Lar São Vicente de Paulo descobriu as três últimas infecções quando as pessoas ainda estavam assintomáticas. A ordem lá dentro segue sendo a de fazer de tudo para evitar um pesadelo como o que vivenciaram no ano passado. “Desta vez não fiquei desesperada porque eles [funcionários] agem muito normalmente. Não ficou aquele movimento de gente indo ao hospital”, conta Analúcia. As medidas preventivas continuam e novas admissões não estão sendo aceitas ―o que aumentou também a sensação de vazio. No momento, só 42 idosos vivem lá. “Eles se vêem ali mais solitários. Isso agrava sobremaneira a carga mental, com o medo de algo invisível e que pode afetá-los”, diz Testasicca. “Mesmo com a vacina, que foi a gota de esperança em janeiro, e vendo estudos que mostram que a Coronavac é eficaz para as novas variantes, o medo nos assola de todo jeito”, acrescenta a assistente social.

Os maiores desafios no momento são financeiros. Durante a crise sanitária, a instituição viu a receita encolher enquanto o a inflação crescia. Uma campanha de arrecadação tenta conseguir recursos suficientes. Instituição sem fins lucrativos, a casa de repouso é mantida historicamente com um aporte financeiro da Prefeitura de Ouro Preto, a retenção de parte dos benefícios sociais de moradores e doações, mas estas duas últimas caíram nos últimos meses. “Estamos vivendo uma grande crise financeira”, lamenta Testasicca.

No pátio do casarão, Analúcia conta ao EL PAÍS em uma conversa por telefone que, sem as visitas, tem aproveitado para ler, rezar e pensar nas aulas que pretende oferecer para adultos que não aprenderam a ler e a escrever. “Mas ainda não é o momento. Quem sabe quando tudo isso passar, né?”, planeja. “Todo mundo quer voltar à normalidade, mas estamos conscientes de que o fato de estarmos imunizados não nos deixa confortáveis neste momento [para relaxar os cuidados]. Todas as medidas preventivas permanecem”, diz Testasicca.

Em Alfenas, solidão e marcas de um surto que não se repetiu

A 388 quilômetros dali, a solidão também se instalou no Lar São Vicente de Paulo de Alfenas desde o ano passado. Há cerca de oito meses não há casos de covid-19 na instituição, que enfrentou um forte surto no último mês de julho, quando 17 dos 117 residentes morreram em algumas semanas. “Seguimos os cuidados e já estamos todos vacinados”, conta a diretora Flavia Correa. Mesmo assim, o medo de um novo surto permanece pelas novas variantes mais perigosas em circulação. “Tenho tanto medo que você não tem ideia. A possibilidade de viver o que já vivemos afeta toda a equipe técnica. Vimos o vírus levar pessoas muito amadas”, acrescenta Correa.

Ivone coronavirus asilo Alfenas
Ivone Bueno foi uma das vítimas de surto da covid-19 na casa de repouso de Alfenas.

Na casa de repouso, é forte a ausência da “menina Ivone”, como os amigos chamavam Ivone Bueno, portadora de Síndrome de Down que aos 54 anos já havia vencido um câncer de mama, mas não resistiu ao coronavírus. A morte dela e de outros 16 moradores deixou cicatrizes, e a instituição organizou terapias para falar sobre pandemia e superação. Há mais de um ano, as festas e os bailes foram suspensos. Assim como as visitas e saídas dos moradores. “O contato familiar hoje é apenas com uma chamada de vídeo. Muitos reclamam, choram e ficam bravos até”, narra Correia. Ela conta que, na semana passada, um dos residentes se irritou porque não pôde ir até a casa de parentes na zona rural da cidade. “Ou vou morrer pelo vírus ou eles vão envelhecer e morrer sem eu poder ver”, bradou. Correa explica que até cogitou retornar as visitas quando a pandemia arrefeceu no ano passado, mas a segunda onda não permitiu. “Tenho uma média de ao menos 20 idosos que nunca tiveram covid-19 e podem ter alguma vulnerabilidade mesmo vacinados. A gente não consegue fazê-los usar máscara sempre, pouquíssimos entendem e usam. Precisamos continuar nos cuidando”, finaliza Correa.

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