Mortes entre caixas, frentistas e motoristas de ônibus aumentaram 60% no Brasil no auge da pandemia
Análise de contratos formais de trabalhadores que não puderam ficar em casa revela excesso de óbitos em janeiro e fevereiro de 2021 em relação a 2020. No mesmo período, ao menos 83 professores do ensino fundamental morreram, contra 42 no ano passado
Trabalhadores formais que não puderam ficar em casa em nenhum momento da pandemia exercem algumas das ocupações que mais registraram aumento de mortes no Brasil, segundo um levantamento exclusivo feito para o EL PAÍS pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data, com base em informações do Ministério da Economia. Frentistas de posto de gasolina, por exemplo, tiveram um salto de 68% na comparação das mortes entre janeiro e fevereiro de 2020, pré-pandemia, e dois dos piores meses da crise sanitária, no início de 2021. Operadores de caixa de supermercado perderam 67% mais colegas no mesmo período. Motoristas de ônibus tiveram 62% mais mortes. Entre os vigilantes, que incluem os profissionais terceirizados que monitoram a temperatura de quem entra em shoppings centers, houve 59% de mortes a mais.
As conclusões vêm de uma análise do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Novo Caged, ligado ao Ministério da Economia. O sistema coleta, mês a mês, informações sobre contratos formais de emprego, inclusive o motivo de encerramentos. Morte é um deles, embora não seja informada a causa. Por isso, não é possível saber se todo o contingente de óbitos se deve apenas à covid-19, mas é possível adaptar o conceito de “excesso de mortes” com base neste banco de dados.
Em tempos de pandemias, os epidemiologistas costumam usar o conceito de “excesso de mortes” para tentar avaliar o impacto da doença sobre a vida da população. Mesmo que uma pessoa não morra diretamente da enfermidade da vez, ela pode morrer por outras complicações decorrentes de sua existência, como a falta de vagas no hospital num caso de urgência. Então, o procedimento normalmente usado é calcular a média de mortes esperada para um dado período e comparar esse dado ao total de mortes registradas por quaisquer causas na pandemia.
Segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Brasil teve mais de 275.500 mortes por causas naturais a mais que o esperado para o país em 2020, um excesso de óbitos de 22%. O que a análise dos dados do Caged sinaliza ―de maneira inédita― é o custo da covid-19 para os trabalhadores de atividades consideradas essenciais. O levantamento mostra taxas de excesso de mortes bem superiores à média da população. São números fortes, principalmente considerando que o cadastro do Ministério do Trabalho só capta dados do mercado formal. Ou seja, não estão contabilizadas aqui as mortes de autônomos e microempresários individuais.
O Sivep-Gripe, sistema do Ministério da Saúde que organiza informações sobre cada paciente que esteve internado para tratar a covid-19, até tem um campo para informar a ocupação do paciente, mas na maior parte dos casos ele não é preenchido. Caso fosse, seria possível avaliar até mesmo as ocupações de pacientes sem emprego formal. A exposição profissional ao risco de infecção é um ponto cego na maioria dos sistemas de saúde do mundo.
Entre os dois primeiros meses de 2020, quando a pandemia ainda não havia causado nenhuma morte no país, e os dois primeiros de 2021, quando grande parte das UTIs brasileiras já não dava conta de tratar de todos os pacientes que chegavam em estado grave, um terço a mais de mortes foi registrado considerando a soma de todas as atividades profissionais. O salto é de 8.633 em 2020 para 11.424 em 2021. A análise mostra que a mortalidade foi mais alta nas atividades mais claramente essenciais, como comércio de víveres e transportes. Olhando os aumentos de maneira proporcional, as ocupações com os maiores aumentos de mortes são as que dependem de contato direto com o público e não pararam durante a pandemia.
O pesquisador Yuri Lima, do Laboratório do Futuro da Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro, divulgou no início da pandemia um estudo mapeando o risco das variadas atividades profissionais. Segundo a primeira avaliação, trabalhadores do comércio tinham 53% a mais de risco de contágio, os da saúde 50% e os professores até 70% caso nenhuma medida fosse tomada, com portas abertas e aulas presenciais.
“O caso do pessoal do comércio é muito interessante”, diz Lima. “Se ele continua aberto porque é essencial, vai continuar um risco alto.” O problema, diz, é que várias alterações foram feitas na definição do que é uma atividade essencial, logo nos primeiros meses da pandemia. Por iniciativa do Governo Jair Bolsonaro, tentou-se incluir academias de ginástica e salões de beleza entre as atividades que não poderiam fechar. O lobby das igrejas seduziu tanto Bolsonaro quanto seu rival João Doria, governador de São Paulo, por exemplo. Neste fim de semana de Páscoa foi a vez do ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques, liberar cultos e missas pelo país.
Profissionais de saúde e construção civil
Profissionais da saúde também aparecem na lista do Caged, e os maiores números de mortes foram registrados entre os profissionais de enfermagem, especialmente os técnicos. Nos primeiros meses da pandemia, havia escassez de equipamentos de proteção individual, os EPIs. De fevereiro a abril, o número de mortes de técnicos de enfermagem captadas pelo Caged chegou a saltar de 44 para 84 em um mês. Os profissionais da saúde são os mais expostos ao contágio, pois tratam diretamente os pacientes.
Mesmo tratando apenas de profissionais com vínculo empregatício formal, os dados do Caged são mais altos do que os do Conselho Federal de Enfermagem. Em janeiro, segundo eles, 47 profissionais do ramo haviam morrido. O Caged contabiliza 104 contratos encerrados no mês devido à morte do profissional.
Outra categoria analisada foi a dos professores. Em todo o Brasil, houve pressão de pais e diretores de escolas particulares para a volta das aulas presenciais. No primeiro semestre, o ensino remoto com todas as suas dificuldades foi a praxe. Depois de julho, muitas escolas voltaram a abrir. Entre professores contratados para lecionar no ensino fundamental, houve 137 mortes no primeiro semestre e 178 no segundo. Em janeiro e fevereiro, 83 contratos formais de professores do fundamental foram encerrados por morte, contra 42 no mesmo período do ano passado.
Desde janeiro de 2020, o Caged usa uma metodologia que economistas consideram não ser perfeitamente comparável com a de anos anteriores. Fazendo essa ressalva, também é possível dizer que houve excesso de mortes na comparação entre 2019 e 2020 nas categorias analisadas. No retrato do ano inteiro, é possível dizer que, no segundo semestre do ano passado, com a melhora dos indicadores da crise em algumas regiões e depois que o pagamento do auxílio emergencial se tornou regular, o excesso de mortes chegou a cair, embora se mantivesse acima do observado em 2019. Por subsetor da economia, os maiores aumentos proporcionais estiveram na vigilância, transporte e hospitais.
O setor de transporte, que concentra o maior número absoluto de mortes, inclui entre seus trabalhadores não apenas motoristas como também quem trabalha nos depósitos e na administração das empresas do setor. Caminhoneiros autônomos não aparecem no Caged.
A construção civil aparece com destaque quantitativo, em grande parte devido ao imenso contingente de funcionários que emprega. No Caged, o aumento registrado no país de mortes por todas as causas foi de 36%. O ano de 2020 foi considerado aquecido no setor. Em maio, o presidente Bolsonaro decretou que a construção era um serviço essencial, e por isso as atividades continuaram. O Sinduscon-SP reconhece apenas duas mortes por covid-19 no setor, em São Paulo, entre maio de 2020 e 17 de março último. Apenas 7% das empresas fornecem transporte especial para os trabalhadores, segundo relatório da entidade. Nos supermercados, que permaneceram abertos durante todas as fases da pandemia, o aumento das mortes foi de 21% entre um ano e outro, mesmo com as metodologias diferentes.
Discurso do Governo e futuro incerto
Nas últimas semanas, desde que alguns Estados começaram a aplicar medidas para reduzir os estabelecimentos comerciais abertos, as redes sociais foram tomadas por bordões como “todo emprego que sustenta uma família é essencial”. Com a renda reduzida e sem auxílio emergencial, muitos trabalhadores se veem emparedados no dilema entre a certeza de passar dificuldades em poucos dias sem trabalhar e a chance de talvez morrer com a volta às atividades normais. Esse discurso trata como “privilegiados” aqueles trabalhadores que não puderam trabalhar de casa, mas também não ficaram sem renda, ganha outro matiz diante da análise do excesso de mortes.
Com um ano de pandemia e uma média diária de mortes superior a 3.000 pessoas, as dificuldades se acumulam. Medidas como o distanciamento social mais severo, que poderia ter evitado o espalhamento da doença, chegam quando já é tarde demais, em parte devido à falta de coordenação sanitária por parte do Governo federal. O quarto ministro da saúde, Marcelo Queiroga, começou a fazer campanha pelo uso de máscaras só após o país superar a marca das 300.000 mortes. A volta do auxílio emergencial, que terá início nesta semana, tem valores muito mais modestos do que os concedidos no ano passado.
“Esses trabalhadores revoltados com a situação não precisavam estar nessa situação. Como é que se coloca uma pessoa numa escolha dessas?”, questiona Yuri Lima, da UFRJ, que defende políticas de renda e crédito para manter as pessoas vivas sem precisar sair de casa e mais empregos garantidos para quando a situação melhorar. “O auxílio já é muito pouco para alimentar uma família, mas sem ele é inviável ficar em casa”, diz.
Na comédia dos erros brasileira, Bolsonaro passou 13 meses insistindo no falso dilema entre salvar vidas e salvar a economia. Acabou prejudicando ambas.
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