Rio de Janeiro adota ‘lockdown envergonhado’, enquanto infecções pela covid-19 aceleram
Especialistas da saúde criticam timidez das medidas e o caos no transporte público da capital fluminense, que impõe aglomerações aos passageiros num momento de agravamento da pandemia
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O Rio de Janeiro ostenta uma das mais elevadas taxas de mortalidade pela covid-19 no Brasil. Enquanto a média nacional de óbitos para cada 100.000 habitantes é de 125, no Estado fluminense o índice chega a 195 mortes por covid-19 para cada 100.000 pessoas, segundo o balanço do Ministério da Saúde atualizado neste sábado. Mas enquanto médicos e pesquisadores brasileiros clamam pelo endurecimento das medidas restritivas, em um momento de agravamento da pandemia no Brasil, cenas de passageiros esmagados dentro de veículos de transportes públicos lotados são cada vez mais comuns na cidade maravilhosa. Na semana passada, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), anunciou um conjunto de medidas para tentar frear o avanço do coronavírus na capital, mas ainda distante de um lockdown (o fechamento total da economia, com exceção das atividades essenciais), como defendem muitos especialistas. “O objetivo dessas medidas, junto com um acompanhamento criterioso, é evitar o lockdown. Tudo que eu não quero fazer é fechar a cidade inteira. Tudo que a gente vem fazendo desde o início do Governo é permitir que a vida, com algumas restrições, siga o mais normal possível”, disse Paes, ao anunciar as novas regras na quinta-feira, 4 de março.
O governador em exercício do Rio, Cláudio Castro (PSC), aliado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é avesso a uma quarentena mais rígida. Com graves dificuldades no caixa da prefeitura e dependente de recursos estaduais e federais, o prefeito da capital fluminense evita atritos com ambos e sempre se posicionou publicamente contra o fechamento total das atividades econômicas. Mas a situação na cidade preocupa. No sábado, a taxa de ocupação dos leitos estava em 83% e ao menos 13 pessoas aguardavam transferência para a terapia intensiva. “Temos 975 pessoas internadas com COVID-19 na SUS do Rio, não é hora de relaxar”, escreveu o secretário municipal de Saúde do Rio, Daniel Soranz, em uma rede social. Já o índice de lotação dos leitos de UTI beirava 90% no fim de semana na capital.
As restrições anunciadas pela prefeitura do Rio de Janeiro vão até 11 de março e consistem na proibição da permanência de pessoas em vias públicas, áreas e praças das 23h às 5h. Também ficam proibidos eventos e festas em áreas públicas e particulares, incluindo rodas de samba; atividades de quiosques e vendedores ambulantes na orla, e o funcionamento de boates, casas de espetáculo e feiras especiais. Feiras livres permanecem liberadas. Bares e restaurantes podem funcionar entre 6h e 17h. As sanções preveem multa individual de 562,42 reais para quem circular sem máscara ou promover aglomerações, além da apreensão de bens e interdição de estabelecimentos que desrespeitarem as regras.
As limitações foram motivadas pelo aumento de casos de sintomas gripais e de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e do agravamento na pandemia nos Estados do entorno, como São Paulo. Na quinta-feira, dia em que foi anunciado o tímido lockdown, a cidade registrou alta de 16% dos casos de atendimento de síndrome gripal e de SRAG nas unidades de urgência e emergência no município.
Para Leonardo Bastos, pesquisador em Saúde Pública e estatístico da Fiocruz, as medidas são oportunas, mas insuficientes. “De dezembro para cá, estávamos vendo uma queda de hospitalizações e óbitos por SRAG. No início de fevereiro e depois do carnaval começou a haver uma mudança, de aumento de hospitalização por SRAG”, explicou. Para Bastos, o ideal seria ter restrição à circulação de pessoas durante as 24 horas do dia com a manutenção das atividades essenciais e o auxílio financeiro a quem precisa. “Já é alguma coisa [o conjunto de medidas anunciado], mas seria a hora de fazer algo mais forte devido às novas variantes do vírus, aparentemente mais transmissíveis. O aumento muito rápido de casos está acontecendo em outras cidades e ainda não aconteceu no Rio. Por isso, a importância de restringir para que não aconteça mesmo”, completou.
O pesquisador da Fiocruz ressaltou que o lockdown mais eficiente é aquele acompanhado de uma campanha de vacinação robusta, como ocorreu no Reino Unido durante sete semanas seguidas. “O vírus continua circulando e, após o lockdown, a transmissão continua. Por isso é tão importante a combinação com a vacina.” A vacinação no Rio, assim como em todo o território brasileiro, segue um ritmo lento e as doses de imunizantes chegam a conta-gotas. Na capital fluminense, 6% da população foi vacinada até este sábado, o que inclui idosos de 78 anos ou mais e os profissionais da saúde. Já Duque de Caxias (terceiro maior município do Rio de Janeiro) registrou na semana passada cenas lamentáveis de pessoas enfileiradas aguardando a aplicação da primeira dose do imunizante, após o prefeito Wellington Dias (MDB) anunciar a vacinação de toda a população com mais de 60 anos, sem que houvesse doses suficientes.
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Na avaliação da médica especialista em Saúde Pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lígia Bahia, as medidas restritivas anunciadas por Paes são tardias e insuficientes, “mas melhor do que nada”. “Haverá restrição de atividades comerciais, mas não de transportes públicos lotados. É um lockdown seletivo e envergonhado”, afirmou.
A precariedade dos transportes públicos em nada mudou desde o início da pandemia. Ônibus e BRTs (ônibus rápidos) continuam a circular lotados. O BRT ainda apresenta ventilação deficiente. Os vidros laterais são vedados e não há janelas que permitam a circulação de ar. O comitê científico para o enfrentamento da covid-19 da prefeitura do Rio tem recomendado desde as reuniões iniciais atenção ao setor dos transportes. Além de uma intervenção imediata na área, o grupo sugeriu alterações na circulação dos ônibus intermunicipais e nos aeroportos, o que não ocorreu. Como tem função apenas consultiva, nem sempre as sugestões do comitê são aplicadas. O grupo também tem defendido barreiras sanitárias com os demais municípios da região metropolitana para garantir a efetividade das medidas de contenção de contágio.
“É uma situação muito difícil. Ontem [quarta-feira, 3 de março] anunciamos a cassação da concessão do BRT, da bilhetagem eletrônica. A gente tem muita dificuldade de agir nessa área e de ampliar o número de linhas de ônibus”, argumentou o prefeito Eduardo Paes, ao apresentar o plano de restrições, na quinta-feira. Segundo Paes, a única medida que permitiria melhorar a situação nos transportes públicos seria, de fato, o lockdown, o que “não é o apontado pelos cientistas agora.” Na quarta-feira, a prefeitura cassou a concessão privada do BRT e vai passar a administrar temporariamente o sistema até uma nova licitação. “Não é uma intervenção permanente, é para licitar. É um absurdo o que está acontecendo. Quero me desculpar com a população”, disse Paes. Uma das razões citadas pelo prefeito para a piora do sistema de transporte público foi a retirada de cerca de 40% do número de linhas de ônibus na cidade, que desapareceram.
Enquanto isso, no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, exclusivo ao tratamento de doentes de covid-19, a entrada de pacientes tem aumentado rapidamente. Em uma semana, o total de pacientes que chegam em um plantão de 12 horas passou de nove para 22 pacientes, segundo o relato de um profissional da enfermagem da unidade. “A gente sabia que viria uma nova onda depois do carnaval, mas não esperava que fosse nessa velocidade, aumentou de forma muito rápida”, disse.
A cidade do Rio de Janeiro contabilizava até o sábado 19.143 mortos por covid-19 e tem taxa de letalidade de 9,1% em relação aos casos confirmados, a maior entre as capitais do país. No Estado do Rio, foram 33.712 óbitos, o que representa 12% das 264.325 vidas perdidas para a doença no Brasil desde o início da pandemia.
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