STF ratifica acesso de Lula a diálogos vazados da Lava Jato, mas adia debate sobre validade como prova
Ministros garantiram o pedido da defesa do ex-presidente. Gilmar Mendes usa voto para atacar frontalmente operação e chamar revelações de “maior escândalo da história”
Por 4 votos a 1, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) seguiu o relator, Ricardo Lewandowski, e garantiu à defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o acesso às mensagens do Telegram entre procuradores da força-tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro apreendidas pela Operação Spoofing―que investiga as invasões por hackers de contas de autoridades brasileiras. Apenas o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, votou conforme pedido dos procuradores para impedir que os advogados do petista pudessem utilizar o material.
Com essa vitória, a defesa de Lula avança um passo em sua meta de tentar anular os processos do ex-presidente, e não só aqueles julgados por Sergio Moro, na Operação Lava Jato. Mas segue à espera de que o STF julgue se as mensagens podem ou não ser usadas como provas. “Isso é matéria para outra ação”, afirmou Ricardo Lewandowski, que já havia autorizado, em decisão solitária, o acesso da defesa do ex-presidente às mensagens. A questão da autenticidade das mensagens deve ser resolvida no âmbito dos processos em que elas forem juntadas aos autos, quer em petições da defesa de Lula ou de outros réus da Lava Jato. E não há prazo definido para que isso aconteça.
Seriam os hackers de Araraquara ficcionistas?
O julgamento também serviu para medir a humor de ministros do Supremo com os protagonistas da Lava Jato. Os sempre críticos como ministros Lewandowski e Gilmar Mendes, mas também o novato Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, e até Carmen Lúcia, que costuma defender as teses da operação, não aceitaram a petição feita por sete procuradores da força-tarefa, como parte interessada no caso, de que o compartilhamento das mensagens pode afrontar o direito à intimidade das pessoas que tiveram seus celulares invadidos e dados compartilhados.
Os ministros da Segunda Turma estavam alinhados em não discutir a validação dos diálogos como provas, inclusive o presidente, Gilmar Mendes. Ainda assim, ao menos dois ministros deixaram transparecer suas avaliações. “A pequena amostra do material já se figura apta a evidenciar, ao menos em tese, uma parceria indevida entre o órgão julgador e a acusação”, disse Lewandowski. Último a votar, o ministro aproveitou para fazer uma longa explanação e criticar frontalmente a Lava Jato. Fez questão de frisar a gravidade do revelado ―em primeiro lugar, pela investigação Vaza Jato, liderada pelo site The Intercept Brasil e com participação de vários veículos de imprensa, entre eles o EL PAÍS. Recheada por trechos de diálogos entre os procuradores e Sergio Moro, alguns deles apontados por juristas como claramente violadores do princípio de neutralidade dos juízes nos processos prevista na Constituição, também deixaram claro sua posição sobre a questão.
Gilmar citou por exemplo, uma conversa entre o então chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol e Moro, em que o procurador explica que estariam apurando sobre as palestras do ex-presidente: “Estamos trabalhando com a colaboração de Pedro Correa, que dirá que Lula sabia da arrecadação via PRC”, referindo-se ao ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa. “Isto tem a ver com o processo penal? Ou esses fatos não existiram ou, se existiram, eles são de uma gravidade que comprometem a existência da Procuradoria-Geral da República”, afirmou. “Se esses diálogos não existiram, os hackers de Araraquara são notáveis ficcionistas”, disse. Caso seja realmente ficção, afirma o ministro, “é preciso que se prove”.
Em outro trecho, Mendes destacou uma conversa em que a procuradora Jerusa Viecili criticava Moro. “Russo tá de sacanagem”, afirmou utilizando o codinome do ex-juiz nos chats dos procuradores. Ela reclamava para o procurador Januário Paludo que o ex-juiz havia dado vistas à defesa e solicitado um pedido do MPF antes do prazo, pois iria viajar. “Essa eu não tinha visto ainda... mas no cpp russo, tudo pode....”, afirmou, referindo-se ao que seria o Código de Processo Penal de Moro.
“É isto que produziu, ministro Fachin, a famosa República de Curitiba. É este o legado jurídico. Isto envergonha. Os sistemas totalitários não tiveram tanta criatividade”, afirmou Mendes, citando a União Soviética e a Alemanha oriental. “Vamos ser julgados pela história se formos cúmplices com este tipo de situação. Nós montamos um modelo totalitário ou alguém é capaz de dizer que há algo de democrático neste CPP Russo”, destacou o ministro do STF, que nem sempre foi um crítico tão ácido da Lava Jato ou de Moro como agora. Em março de 2016, por exemplo, Gilmar Mendes decidiu em julgamento monocrático (solitário) suspender a nomeação de Lula como então ministro do Governo Dilma Rousseff, acusando o petista de tentar fugir de uma ordem de prisão de Moro. Nenhuma palavra de crítica foi feita à divulgação dos áudios entre Lula e Dilma feita pelo juiz. A decisão final do plenário sobre a nomeação de Lula só aconteceria anos depois, já pós-impeachment do Governo petista.
Em seu voto nesta terça-feira, Mendes também criticou o papel do ex-auditor da Receita Federal Roberto Leonel, conhecido colaborador da Lava Jato, que fez inclusive serviços de investigação e coleta de dados fora das petições formais. “Vocês sabem que vivi na Alemanha, e acompanhei a história da Stasi. Muito provavelmente replicamos essa história com a Receita Federal fazendo investigação à sorrelfa”, afirmou, apontando Leonel como “um verdadeiro homem da Stasi na Receita Federal”. O auditor foi indicado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro para a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em janeiro de 2019. Leonel deixou o cargo e se aposentou após o órgão ser transferido para o Ministério da Economia, em setembro de 2019.
A origem do julgamento
Os advogados de Lula ainda não protocolaram uma petição ao STF para que essas mesmas mensagens sejam incluídas nos autos do habeas corpus que pede a suspeição de Moro, um julgamento que o ministro Gilmar Mendes promete colocar de volta em pauta ainda neste semestre.
O julgamento no Supremo teve como origem uma petição ligada a ação penal do caso do Instituto Lula, em tramitação na 13ª Vara Federal de Curitiba. No processo, o ex-presidente é acusado de ter recebido vantagens indevidas do Grupo Odebrecht, como um imóvel em São Paulo para nova sede do Instituto e um apartamento em São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista. Inicialmente, a defesa pediu acesso ao acordo de leniência da Odebrecht, bem como aos documentos correlatos, como perícia nos sistemas da companhia, e documentos trocados entre a força-tarefa e organizações internacionais, como o FBI e o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ). As sucessivas negativas tanto dos procuradores como dos magistrados da primeira instância em liberar o acesso fizeram com que a defesa de Lula recorresse ao Supremo. Em agosto de 2020, a Segunda Turma concedeu o acesso aos autos do acordo de leniência da Odebrecht que digam respeito ao petista, que foi atendida de forma restrita. A alegação dos procuradores era de que não havia novos materiais para serem compartilhados. Mas as mensagens divulgadas pela Vaza Jato mostravam que isso não era verdade. Por isso, a defesa voltou ao Supremo pedindo acesso às conversas apreendidas pela Spoofing, e conseguiram.
“A polícia tem acesso aos autos, a Justiça tem acesso aos autos, mas a defesa não tem acesso aos autos? Não é direito fundamental da defesa ter acesso aos autos?”, afirmou a ministra Carmén Lúcia no julgamento. “Não houve nenhum movimento intempestivo deste relator (...) foi uma sequência de decisões para fazer cumprir aquilo que foi determinado e pela [Segunda] Turma desde agosto, de algo que vem sendo sonegado à defesa há quase três anos e que agora, parece, vem a lume”, afirmou Lewandowski ao justificar seu voto.
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