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O Brasil que reduziu a pobreza em plena pandemia vê a fome rondar quem deixou de receber o auxílio

“Comprei cama, armário, sapato… tudo à vista”, conta Sandra Gusmão, sobre o dinheiro da ajuda emergencial. Agora ela faz fila num refeitório popular em São Luis para garantir a refeição do dia

Sandra Leonora Gusmão, que de abril até dezembro recebeu o auxílio emergencial, no quarto que aluga em São Luís, capital do Maranhão.
Sandra Leonora Gusmão, que de abril até dezembro recebeu o auxílio emergencial, no quarto que aluga em São Luís, capital do Maranhão.MARCIO VASCONCELOS
Naiara Galarraga Gortázar

Um dos efeitos mais chamativos desta pandemia no Brasil é que a pobreza caiu a níveis históricos. Sim, fazia décadas que não havia tão poucos miseráveis. O caso de Sandra Leonora Gusmão, que numa segunda-feira recente fazia fila em num refeitório social de São Luís (MA), ajuda a explicar o fenômeno. Com 36 anos, ganha a vida como doméstica diarista. Cuida de idosos, faz faxina ou passa roupa em dias avulsos, por 150 reais. A pandemia a deixou sem esses bicos com os quais sobrevive, mas, em menos de um mês, levou à criação no Brasil de um auxílio emergencial para mitigar as penúrias do coronavírus. Eram 600 reais por mês.

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People wearing protective face masks queue to receive donations of cooking gas bottles distributed by Central Unica das Favelas (CUFA), a Brazilian non-governmental organization, following the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in the Rocinha slum in Rio de Janeiro, Brazil May 22, 2020. REUTERS/Pilar Olivares
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Aplicativo auxílio emergencial do Governo Federal.
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O primeiro pagamento foi uma das maiores surpresas da sua vida. Como mãe solteira, Gusmão tinha direito ao dobro. Para ela, uma dinheirama inédita. Conta orgulhosa que pelo menos uma vez não precisou fazer crediário. “Comprei cama, armário, sofá, comida, roupa, sapato… tudo à vista”, enumera, enquanto faz fila com outros indigentes. Por três reais, leva um prato de carne de porco, arroz e feijão. Sua única refeição do dia.

Como o vírus continua circulando, Gusmão não é chamada pelos clientes. E a renda mínima pelo coronavírus acabou em 31 de dezembro. O programa brasileiro de auxílio foi um dos mais amplos do mundo. Desde abril, o Governo federal injetou 316 bilhões de reais diretamente no bolso de 70 milhões de pessoas, um terço dos brasileiros, a fim de mitigar o golpe entre os que subsistem com ajudas sociais, os trabalhadores informais e os autônomos (além de milhares de militares que receberam o benefício indevidamente). Mas o coronavírus continua por aí, centenas morrem a cada dia, a vacinação acaba de começar, mas aos trancos e barrancos... E, para Gusmão e outras pessoas na mesma situação, conseguir esses bicos que garantem a subsistência continua sendo muito difícil. Todos os dias ela vai ao refeitório popular. Aqui a terra, graças às chuvas amazônicas desta época, é suficientemente fértil para garantir a alimentação mais básica. Em outros cantos do Brasil, teme-se que a fome apareça.

A socióloga Leticia Bartholo, especialista em programas de transferência de renda, afirma que o pagamento da ajuda pelo coronavírus “foi capaz de conter o avanço da pobreza e da desigualdade”, mas adverte: “Obteve uma redução histórica da pobreza, mas com um efeito transitório”. Agora, sem essa injeção de dinheiro, “o panorama é muito ruim para as classes populares brasileiras”. Ninguém discute que, se a ajuda não for prorrogada ou substituída por algum sucedâneo, a pobreza disparará. Resta ver se para os níveis imediatamente anteriores à pandemia, ou além.

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O impacto pode ser especialmente devastador em São Luís e no resto do Maranhão, um dos Estados mais pobres e menos desenvolvidos da federação, e onde proporcionalmente mais gente recebeu essa injeção extraordinária de dinheiro público. Aqui, o benefício representou cerca de 8,5% do PIB, segundo um estudo acadêmico, frente a uma média de 2,5% em outros Estados.

Cleanna Ferreira com uma vizinha que, como ela recebeu a ajuda do Governo até dezembro, passeiam pelo bairro que vivem em São Luís.
Cleanna Ferreira com uma vizinha que, como ela recebeu a ajuda do Governo até dezembro, passeiam pelo bairro que vivem em São Luís.MARCIO VASCONCELOS

O auxílio emergencial permitiu que os mais pobres ficassem em casa nesta cidade, uma das primeiras e poucas a terem decretado um confinamento rigoroso. O Maranhão tem a epidemia sob controle. O comércio está aberto, e quase todos usam máscaras. Mas a falta de renda obrigará milhões de pessoas que perderam o emprego ou a clientela a voltarem à rua para tentar ganhar a vida, com o decorrente risco de acelerar os contágios da covid-19 enquanto a vacina não os frear.

A pressão desses milhões que deixaram efemeramente a pobreza e agora retornarão a ela recai neste momento sobre os Estados e municípios. “O que podemos fazer é tentar diminuir o desastre, evitá-lo é muito difícil, porque (os Estados) não emitimos moeda nem podemos contrair dívida”, explica o governador do Maranhão, Flávio Dino, um ex-juiz do PCdoB que em 2014 rompeu a hegemonia política do clã Sarney neste Estado. Detalha que, para paliar o golpe, aprovou uma ajuda para catadores de resíduos, um cheque de 600 reais para que famílias comprem e ativem o comércio, e distribuiu 300.000 cestas básicas, além de um plano de obras públicas de quase 600 milhões de reais. “O correto seria prorrogar a ajuda pelo menos até meados deste ano, quando acho que já veremos os efeitos da vacina.”

Agora que ficou sem o benefício do coronavírus, Cleanna Ferreira, de 31 anos, recorrerá ao que conseguiu economizar, mas basicamente ela e seus dois filhos voltarão a depender da pensão da bisavó. Dona Eugenia “tem 108 anos”, diz. Acaba de despertar da sesta e se escuta seu passo hesitante no quarto ao lado. Ferreira passará a próxima noite acompanhando um paciente internado em um hospital, e vai ganhar por isso 80 reais, o que a família do doente pode pagar. “Não, não está com covid-19, porque se estivesse eu não ia”, diz, taxativa, na sua humilde e escura sala de estar, diante de um altarzinho e uma televisão imensa que conta as últimas notícias do namoro de alguns famosos a bordo de um iate espetacular. Todos estes pobres vivem à espera de qualquer notícia que a televisão possa anunciar sobre as ajudas sociais.

Gilberto Mendes espera que o auxílio emergencial seja prorrogado para voltar a ter algum tipo de renda, já que está desempregado desde 2016.
Gilberto Mendes espera que o auxílio emergencial seja prorrogado para voltar a ter algum tipo de renda, já que está desempregado desde 2016. MARCIO VASCONCELOS

Gilberto Mendes, de 45 anos, acompanha por outra via as novidades sobre o pagamento emergencial e o vaivém político: pelo canal do Congresso no YouTube. “Se não prorrogarem o auxílio emergencial, a situação ficará crítica. Muitos passarão fome”, adverte esse agente de segurança desempregado há quatro anos. Acabada a ajuda, sua renda voltará a zero. Os parentes o sustentam.

Regina Santos, de 55 anos, diretora de um ambulatório, critica que as pessoas “não tenham sido preparadas para administrar esse dinheiro, porque muitos acabaram endividados”. Conta que a pandemia deixou outros impactos dos quais não se fala: “Temos uma epidemia de gestações entre mulheres jovens”.

Outro obstáculo que citado pela socióloga Leticia Bartholo é estrutural: os limites orçamentários do programa Bolsa Família, considerado por muitos a ferramenta mais eficaz de combate à pobreza no Brasil nas últimas décadas. Bartholo lamenta que as autoridades não tenham aproveitado a epidemia para que “as transferências de renda alcancem um nível mais digno e para ampliar seu alcance”. O Bolsa Família conseguiu tirar milhões de brasileiros da miséria e da pobreza graças a quantias individuais muito pequenas. Mas esta especialista considera que é hora de ir além.

O presidente Jair Bolsonaro quis rebatizar o Bolsa Família para diluí-lo como símbolo do legado do Partido dos Trabalhadores (PT), mas a ideia não vingou.

O impacto desse pagamento para a vida de famílias como a de Mauricia Mendes, de 43 anos, é tamanho que 18 anos depois de ter recebido o primeiro pagamento ainda recorda como a quantia foi aumentando: “Comecei a receber o Bolsa Família quando meu terceiro filho nasceu”, relembra, no alpendre da casa que compartilha com dois de seus irmãos e suas respectivas famílias, num povoado da periferia de São Luís. “No começo eram 26 reais por mês, depois subiu para 30, para 65, para 293 quando ele tinha uns 10 anos, foi o máximo que cheguei a ganhar. Agora são 150 reais, mas como ele completou 18 anos vão me tirar da lista”, diz a mulher. Como todos os beneficiados pelo Bolsa Família, de abril a dezembro o auxílio emergencial substituiu esta ajuda.

Cerca de 14 milhões de famílias brasileiras recebem o Bolsa Família para complementar rendas inexistentes ou parcas, sendo 81.000 delas em São Luis. A contrapartida é que seus filhos frequentam a escola e têm as vacinas em dia. Mauricia Mendes conta orgulhosa que seu filho mais velho está na faculdade, o segundo numa escola técnica, e o caçula acaba de terminar o ensino médio.

As autoridades desenharam o programa de pagamentos do coronavírus para que tudo fosse administrado via Internet, evitando aglomerações na frente dos bancos. Havia dois desafios principais: a saturação do site que recebia as inscrições para o auxilio, acessado simultaneamente por dezenas de milhões de pessoas, e o fato de muita gente não ter celular com Internet, computador ou conexão em casa, ou não saber lidar com a rede de computadores por ter nascido em outra época, ou simplesmente não ter os documentos necessários. Por isso a Prefeitura de São Luís abriu um serviço de ajuda telemática, e a Secretária de Direitos Humanos do Maranhão mobilizou os sindicatos e a sociedade civil para ajudar os mais desamparados a navegarem pela burocracia digital.

As filas nas agências da Caixa Econômica Federal são desde o pagamento da primeira parcela uma das imagens características da crise sanitária brasileira. Nesta semana, retardatários ainda faziam fila em frente a agências da Caixa em São Luís para sacar o último pagamento.

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