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Coluna
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Quanto mais puros em sua fé, mais perigosos

Rosa Montero

Os humanos são contraditórios e paradoxais. Por isso, a pureza monolítica do dogma é desumana e falsa

Acabo de ler o livro Mal-entendido em Moscou (Record). Narra a viagem de um casal de professores franceses sexagenários à capital da União Soviética em 1966, e sem dúvida reflete uma viagem real de Simone e Sartre. Magnífica ensaísta e memorialista, Beauvoir, que foi uma das mães do pensamento do século XX, carecia totalmente de imaginação, e como romancista me parece bastante medíocre. É curioso, porque talvez Sartre tenha sido melhor romancista que filósofo, enquanto quem de fato tinha um rigor filosófico era ela. No entanto, dentro do âmbito em que os dois se formaram, Beauvoir, que tanto fez pela liberação das mulheres (obrigada, Simone), sempre deixou a Jean-Paul o lugar privilegiado e masculino do pensamento.

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960.
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1960.AFP

Mal-entendido em Moscou é um texto muito curioso, mais pelo que nos conta do casal Sartre-Beauvoir do que por seus valores narrativos (tem um final fofo de romance “água com açúcar”). André, alter ego de Jean-Paul, discute com uma filha que reside em Moscou porque ele, que mora em Paris, é mais pró-soviético e mais partidário da pureza revolucionária que sua filha, que é casada com um russo e conhece o dia a dia da URSS. A Rússia que o professor francês está vendo nessa viagem não é a dos seus sonhos; o mal-estar de André “tinha um nome: decepção”. Apesar disso, “havia, claro, uma grande diferença entre a URSS e o Ocidente. Enquanto na França os avanços técnicos não faziam mais do que aprofundar a lacuna entre privilegiados e explorados, aqui a estrutura econômica havia sido disposta para que todos tirassem proveito deles um dia. O socialismo acabaria se transformando em realidade. Um dia triunfaria no mundo todo. [A situação atual] era apenas um período de retrocesso”. Isso embora ele já não pudesse ver esse triunfo, por causa da idade, o que o atormentava. E aqui vem uma frase lapidar: “[André] havia confiado na história para justificar sua vida: já não confiava nela”.

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Essa coisa de “um dia” me parece o ponto-chave: então a realidade mostra uma inequívoca divergência entre nossos sonhos e os fatos? Claro que não. Simplesmente profere-se que é um momento fracassado, mas que o caminho acabará em vitória. Sartre foi pró-soviético durante o stalinismo e depois foi um apaixonado maoísta nos atrozes momentos da Revolução Cultural. Uma trajetória lamentável.

E não que ele fosse exatamente estúpido. O que leva uma mente brilhante a se petrificar no dogmatismo? Não sei. Eu diria que pessoas assim são “viciadas” no absoluto e na pureza. Presas na urgência infantil de acreditar em algo perfeito, numa bondade suprema e sem sombras, em paraísos terrestres. Necessitam manter essa credulidade elementar intacta, e por isso negarão qualquer evidência. Basta seguir conservando a fé nessa coisa de “um dia...”.

Talvez as pessoas que sucumbem ao dogma tenham alguma falha no cérebro, talvez tenham algum neurotransmissor funcionando mal e isso as deixe mais propensas ao vício. Mas também acredito que haja uma falta de músculo ético. Como diz o romance: André havia confiado na história para justificar sua vida. É muito cômodo, não? Se colocamos o bem fora de nós e nos aferramos a ele como piolhos, sentindo-nos seus mais puríssimos defensores, isso nos dá carta branca para sermos impuros na vida real. Como foram Jean-Paul e Simone, que manipularam e abusaram de seus numerosos e juveníssimos amantes, estudantes em situação de clara inferioridade. Pois bem, para mim a vida só se justifica com os nossos atos. E, sem empatia, não há dignidade possível.

Detesto os puros. Estão convencidos da sua superioridade e de serem sempre os bons pelo simples fato de repetirem como papagaios descerebrados uma crença (fiquei alucinada com alguns tuítes dos defensores de Nicolás Maduro na última crise de Juan Guaidó). E, quanto mais puros em sua fé, mais perigosos: o inquisidor Torquemada fez os demais arderem porque ele mesmo ardia em fanatismo. Os humanos são contraditórios e paradoxais: por isso, a pureza monolítica do dogma é desumana e falsa. O dogmático se sente melhor que os demais, sente-se um anjo. Mas recordemos que são os anjos que se transformam em demônios.

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