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O que mais é preciso acontecer na Venezuela para que esses fiéis devotos caiam do cavalo?

Sob a suposta defesa de uma sociedade mais justa, aqueles que se negam a enxergar a realidade terminam sendo cúmplices de tiranos

Fernando Llano (AP)
Rosa Montero
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Nunca fui uma pessoa mitômana, talvez por temperamento mas também por ter começado a trabalhar como jornalista aos 19 anos, o que me fez conhecer pessoas famosas desde muito jovem e comprovar que elas têm os mesmos defeitos que todos nós. De fato, quando percebo alguma falha em alguma personalidade que admiro (por exemplo, a grande Marie Curie foi uma mãe muito rígida), costumo admirá-la ainda mais, porque isso a humaniza e permite que sirva de verdadeiro modelo nessa luta eterna que é a existência. Por isso me enlouquece essa urgência que tantas pessoas parecem sentir de construir para si mesmas um pequeno altar de deuses pessoais, divindades intocáveis a quem se aferram com a mesma fé que um cristão fundamentalista. Em 40 anos de vida profissional, poucas vezes recebi ataques tão ferrenhos como em três ocasiões em que escrevi com algum julgamento crítico sobre John Lennon, Michael Jackson e a princesa Diana. E meus textos não foram sangrentos. Mas os fãs não puderam suportar a mais leve sombra na aura luminosa de seus santos: os ídolos têm de ser perfeitos e imaculados. Há pessoas que parecem não serem capazes de aguentar a existência sem ter à mão algum deuszinho terrestre a quem adorar. Em uma reportagem sobre os 20 anos da morte de Diana, vi uma mulher que, claro, não tinha conhecido a princesa pessoalmente, mas dizia: “Foi o pior dia da minha vida”. É convidativo, não? Supera o poço sem fundo de sua necessidade.

Einstein já dizia: “Que triste época a nossa! É mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”

Estes extremos de mitificação podem nos parecer comoventes ou patéticos, e em qualquer caso inofensivos. Mas infelizmente essa mesma avidez de santos e – o que ainda é pior – de paraísos se encontra em muitos outros âmbitos sociais com consequências nefastas. Santo intocável é, por exemplo, Che Guevara, alçado aos altares em meio mundo. E, dado que os paraísos tradicionais como a União Soviética, a China ou Cuba foram desmoronando com o tempo, um número assombroso de pessoas aparentemente inteligentes e amáveis se aferra com uma persistente cegueira à invenção do Éden venezuelano. E, como ocorre em todos esses processos de mitificação, tanto faz se a realidade desmentir a ilusão vez ou outra; que a Venezuela seja um Estado em colapso, que haja violência, torturas, desaparecimentos, assassinatos e o mais escandaloso esmagamento dos direitos democráticos. Nada disso importa porque os preconceitos só são vistos por aqueles que os querem ver (Einstein já dizia: “Que triste época a nossa! É mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”). E porque não estamos falando de ideias, mas sim de crenças. Não estamos no território da razão, mas sim no da fé.

O que mais é preciso ocorrer na Venezuela para que esses fiéis devotos caiam do cavalo? Que esquartejem bebês em praças públicas? Temo que nem assim. No mês passado, Óscar Puente, prefeito da cidade espanhola de Valladolid e ninguém menos que porta-voz do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), disse em uma entrevista que a crise da Venezuela “está sendo superdimensionada” e é “responsabilidade coletiva dos venezuelanos”. (Ele teve de ser corrigido publicamente pela vice-secretária-geral do PSOE, que falou dos mais de 100 mortos nos protestos e dos 600 presos políticos). Enfim, Puente não é imbecil, ou assim espero. Mas disse isso no auge do conflito e da repressão, enquanto o sangue escorria. O que estão apostando pessoalmente aqueles que teimam contra o vento e a maré para continuar acreditando em paraísos inexistentes? Talvez isso alivie certa culpa inconsciente de ter mais do que outros neste mundo de desigualdade atroz. Ou quiçá sejam indivíduos mais frágeis e precisam se aferrar a dogmas rígidos para aguentar a angústia de viver. Quem sabe não são românticos e demasiadamente inocentes, ou seja, ignorantes. Mas o condenável é que se negam a enxergar a realidade (“Atreva-se a saber”, como diria Kant). E também suponho que acreditar em um Éden terreno alegra a vida, da mesma maneira que a alegram os finais felizes de Hollywood. Não sei, de verdade. Não consigo explicar a mim mesma. Não consigo entender. Mas é algo trágico porque, sob uma suposta defesa de uma sociedade mais justa, terminam sendo cúmplices de tiranos.

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